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Adentrar um vagão não é entrar numa história

Simone de Mello24 de fevereiro de 2006

Prosa poética de Friedrich Achleitner resgata experimentalismo da Poesia Concreta e humor da literatura do absurdo.

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'a maioria dos vagões escritos são imprestáveis, um escândalo'

"ela empurrava o estável veículo cuneiforme de três rodas com o futuro contribuinte fiscal dentro e com uma fúria cega e grande velocidade para cima dos pedestres. no lugar do crime, que os vienenses chamam de schauplatz, restaram três aposentados, um morto, um paralítico e outro inconsciente. um aposentado sobrevivente ficou olhando o desastre com curiosidade e disse, rindo por dentro: não deixa de ser uma solução para o acordo entre as gerações."

Este miniconto do austríaco Friedrich Achleitner (1930), intitulado "três a um", faz parte do seu recém-lançado livro de prosa und oder oder und (e ou ou e), uma coletânea de breves textos humorísticos e absurdos publicada pela editora Zsolnay, de Viena. Os escritos têm um gênero limítrofe entre poema em prosa e conto em miniatura, sempre com uma graça aforística.

Da sopa de letras à prancheta

Alguns textos poderiam ser considerados uma variante em prosa do poema-minuto de vanguarda, como "mariahilfer strasse" (uma rua de viena): "primeiro o poeta atravessou a mariahilfer strasse e então a mariahilfer strasse atravessou o poeta".

Outros jogam com a espacialização da escrita, resgatando a Poesia Concreta, movimento do qual Achleitner participou como ativista do chamado Grupo de Viena, um círculo de escritores em torno dos poetas de vanguarda H.C. Artmann e Konrad Beyer atuante na capital austríaca na década de 50.

A infindável galeria de personagens de Achleitner inclui misantropos, cowboys, tiroleses, manetas, magistrados, lingüistas e diversos tipos da sociedade vienense, além de personificações de malas, peixes e montanhas, de contos de fada e da obra de arte perfeita. Personagem seria muito: embora os figurantes da prosa absurda de Achleitner muitas vezes sejam tão marcantes como personagens de um longo romance, geralmente são conseqüência direta do discurso poético, nascendo muitas vezes de uma piada ou trocadilho.

Friedrich Achleitner tem uma interessante trajetória entre a arquitetura e a literatura. No final da década de 50, o arquiteto abandonou a profissão para se dedicar a atividades literárias, escrevendo poesia concreta e dialetal como integrante do Grupo de Viena. Posteriormente, abandonou a poesia para se dedicar exclusivamente à arquitetura, como crítico, arquiteto e professor.

Ele também escreveu um abrangente guia de arquitetura austríaca do século 20 (Führer zur Österreichischen Architektur im 20. Jahrhundert). Seu retorno literário – com Einschlafgeschichten (Histórias para Dormir. Viena: Zsolnay, 2003) e Wiener Linien (Linhas de Viena. Viena: Zsolnay, 2004) – foi celebrado por público e crítica.

Linhas de transporte em greve

Achleitner é um autor que falta ser traduzido para o português, tanto por seu vínculo com uma tradição originariamente brasileira, a da Poesia Concreta, como pela universalidade de seu humor nonsense, que compete com Christian Morgenstern e Edward Lear. O grande desafio ao tradutor é encontrar soluções para os inúmeros trocadilhos e tornar transparentes referências bastante locais da tradição austríaca e vienense, em especial.

A concepção de literatura de Achleitner é comprometida com a vanguarda. Para ele, a função da linguagem literária não é transportar conteúdos, mas sim existir por conta própria. Um princípio encenado com mestria no miniconto "história ou vagão":

"nem todas as pessoas que adentram um vagão entram numa história, para abandoná-la de novo depois de algumas estações. nem toda entrada é apropriada para uma história, muito menos uma saída. é de se recomendar, todavia, desenvolver a consciência de que seria possível entrar numa história. afinal, não é a mesma coisa estar dentro de uma história ou dentro de um vagão de verdade. além do mais, me interessaria saber quem está escrevendo esta história. se, ao adentrar um vagão realmente existente a gente está nas mãos de um designer, vagões escritos são muito mais perigosos. a maioria dos vagões escritos são imprestáveis, um escândalo, e a gente não tem nem a garantia de chegar à próxima estação, caso ele realmente se ponha em movimento. [...]"

Friedrich Achleitner: und oder oder und (e ou ou e). Viena: Zsolnay, 2006; 109p.