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Adeus nas fogueiras de Lom Kaen

gh30 de dezembro de 2004

Templo budista em Khao Lak vira crematório e última estação para quem procura desaparecidos da catástrofe na Tailândia. Cadáveres de moradores locais são incinerados, os de estrangeiros esperam pela identificação.

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Incineração das vítimas segue tradição religiosaFoto: AP

Na morte, todos são iguais – moradores locais, trabalhadores estrangeiros e turistas ocidentais. Seus cadáveres estão amontoados ao redor do templo dourado de Lom Kaen, na praia de Khao Lak, península tailandesa de Phuket. Ninguém sabe quantos são. Centenas, no mínimo. Os corpos foram envoltos em pedaços de pano ou lona, para evitar a exposição excessiva ao sol. A mortalha improvisada não consegue reter o cheiro penetrante da morte. Em questão de minutos, ele gruda na roupa e atravessa as máscaras de proteção impregnadas de essências. O ex-paraíso turístico assemelha-se a uma paisagem apocalíptica. O fim dessa catástrofe é imprevisível. A todo momento, chegam mais mortos.

É assim que o repórter Matthias Gebauer, da revista Der Spiegel, relata o que viu em Khao Lak, até sábado passado uma praia tranqüila, própria para famílias. Ao lado dos caixões de madeira compensada, destinados aos defuntos, ardiam dez fogueiras. "Começamos com a incineração, devido ao excesso de cadáveres", explica um policial.

A cremação continuará nos próximos dias. Foram confirmados 2,5 mil mortos na região, mas sabe-se que são bem mais. Os parentes das vítimas locais chegam com lenha e galões de gasolina. Os cadáveres que chegam ao templo ao menos ainda são fotografados para facilitar a identificação.

Verwüstungen durch Beben und Flutwelle in Asien
Destruição por todos os lados no Sudeste Asiático

Corpos congelados

É quase impossível reconhecer até mesmo um irmão. Os corpos estão inchados, tesos, como se estivessem congelados, com os rostos completamente deformados, a pele coberta de manchas pretas. Ao lado dos galões de gasolina, derretem alguns blocos de gelo. Desistiu-se de refrigerar os defuntos, porque são simplesmente demais.

Ao redor das fogueiras, parentes das vítimas realizam pequenas cerimônias fúnebres. Embora muitos tailandeses tenham perdido vários membros da família, eles tentam se conformar. Alguns trouxeram esteiras para sentar no chão. Outros acendem velas. Todos carregam máscaras já meio amareladas, para resistir ao cheiro dos mortos.

Ao redor de uma das fogueiras, destacam-se dois rostos brancos: os do aposentado suíço Josef V. e seu filho. Ambos também carregam máscaras de proteção; o filho – médico – ainda tem algumas de reserva para o pessoal que presta socorro. Como muitos outros, depois de três dias de procura nas clínicas de Pukhet, eles encontraram no templo da morte em Khao Lak a triste e definitiva certeza. "Ainda que pareça cômico, fiquei contente de haver finalmente encontrado minha esposa", diz Josef V., de olhos vidrados nas chamas que consomem os restos mortais da mulher.

Ao longo da costa tailandesa, que já foi a "corrente de pérolas" do turismo, está tudo arrasado. Restaram os destroços dos hotéis e das escolas de mergulho, cobertos por uma camada de lama, misturados com automóveis, palmeiras e restos dos quiosques de praia. A região "acabou" diz um ex-guia turístico que acolheu a família suíça. A reconstrução vai demorar anos.

Enterrados na lama

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Estátua de Buda em frente à destroços de hotel em Khao LakFoto: dpa

A informação divulgada pelo chanceler alemão Gerhard Schröder de que há mais de mil alemães desaparecidos também circulou em Khao Lak. Supõe-se que muitos desses desaparecidos estejam soterrados sob as avalanches de lama e destroços de casas e edifícios. Ainda pode demorar dias até serem resgatados pelos militares e, provavelmente, levados para o templo de Khao Lak.

A história dos dois suíços dá uma idéia do horror causado pelas ondas monstruosas. Tudo indicava que o domingo passado seria um dia bonito para o casal de aposentados. "Minha esposa comemorava seu 63º aniversário", conta Josef. De manhã cedo, eles notaram um leve tremor. "Vi a água no copo sobre a mesa de cabeceira balançar, mas não pensei em nada", conta o aposentado

Ele até acalmou a esposa, dizendo que só tinha sido um tremor leve. Naquele momento, não se podia imaginar que o abalo sísmico ocorrido 40 quilômetros sob o mar teria efeitos mortais. Ninguém sabia que começara perto de Sumatra a catástrofe do século.

Josef viu sua mulher sendo arrastada pelas ondas assassinas. Ele havia corrido para o bangalô, ao ver uma onda gigante começar a erguer-se próximo à praia. Como muitos outros turistas em Phuket e arredores, foi buscar a câmera, pensando em fotografar o espetáculo da natureza.

Muralha de 20 metros

Jahresrückblick 2004 Dezember Erdeben Tsunami in Asien
Ondas assassinas surpreenderam muitos turistas e moradores locaisFoto: AP

Ao voltar, a onda já avançara em alta velocidade sobre a areia. "O que eu vi foi a sombra da muralha de água. Ela tinha uns 20 metros de altura. Gritei a todo pulmão, mas no barulho de mil aviões a jato, minha esposa não me ouviu. Em questão de segundos, desapareceu no turbilhão das ondas", conta.

Seguiram-se três dias de busca incessante nas clínicas das proximidades de Khao Lak e em Phuket. Josef invadiu quartos superlotados, diante de cada porta tinha a esperança de encontrá-la. Na terça-feira à noite, na chegada do filho, ouviu falar do templo dos cadáveres. No dia seguinte, eles decidiram que esta seria a última estação da longa busca da esposa e mãe.

O que os familiares e parentes de tailandeses ou turistas enfrentam no templo da morte é indescritível. Como muitos outros, os dois suíços rasgaram quase aleatoriamente as toalhas de lona que envolvem os cadáveres, pensando que haviam encontrado a mãe. Com luvas de plástico, o filho examinava os corpos, tão deformados que estavam irreconhecíveis.

Como estudante de Medicina, ele já havia feito isso muitas vezes, mas cadáveres como esses nunca havia visto. Primeiro, procuraram pela aliança ou um relógio. Mas perceberam logo que os objetos de valor haviam sido roubados, antes que os corpos chegassem ao templo.

Suportar a loucura

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Catástrofe do século tem dimensões assustadorasFoto: AP

Como detetives, eles haviam vasculhado o quarto do casal no hotel Merlin, que antes do tsunami tinha uma vista esplêndida para o mar. Não encontraram muito. "Pelo menos sabíamos, depois da busca, que minha mãe morreu trajando o biquíni laranja e não o azul", diz o filho, lutando contra as lágrimas. Cada um aqui tem de lidar com a loucura à sua maneira, alguns gritam, outros parecem estar sob anestesia emocional.

No final, seus conhecimentos médicos o ajudaram a reconhecer a mãe através de características anatômicas de que se lembrava. Até este momento, porém, vivera horas terríveis. Momentos de horror a ser enfrentados por muitos turistas, que ainda procuram familiares, amigos e parentes nos murais dos desaparecidos em Phuket.

Enquanto isso, ardem as fogueiras do templo da morte na Tailândia e outros países atingidos com tradição hindu ou budista, como a Índia e a Indonésia. Estrangeiros ou pessoas que se parecem com eles não serão incinerados, antes da identificação e autorização pelos parentes. A família suíça aprovou a cremação. "Minha mãe ficou três dias exposta ao calor, agora ela merece ter seu último repouso", diz o filho. Enquanto as chamas diminuem, o pai afasta-se calado da fogueira e sai caminhando aparentemente sem direção.

Autoridades estrangeiras até agora não apareceram no templo. Os consulados enviaram dezenas de funcionários à península de Phuket, mas eles estão fadados a capitular diante das montanhas de cadáveres. Mesmo que os peritos do BKA (Departamento Federal de Investigações) da Alemanha coletem amostras de DNA, muitas famílias ainda têm pela frente angustiantes dias de espera. Até lá, as chamas continuarão acesas – as da esperança e as do templo. Por muito tempo, Lom Kaen ainda será o templo da morte ou, para quem crê, a porta para um outro paraíso, escreve o repórter da Spiegel.