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Artes Cênicas

Augusto Valente

Ópera, dança e teatro alemães estão entre os mais bem subsidiados do mundo. Reviravoltas econômicas das últimas décadas alteram estruturas de produção, mas nem sempre para pior.

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As estruturas de financiamento e produção dos teatros alemães se originaram nos palcos das cortes dos séculos 17 e 18 – sustentados com toda a pompa pelos príncipes, como objeto de ostentação –, passando pela fundação dos teatros municipais, no século seguinte, por iniciativa da classe burguesa.

Assim, ao contrário da maioria dos outros países e apesar das profundas mudanças estruturais dos últimos anos, na Alemanha as artes cênicas continuam sendo encaradas sobretudo como incumbência dos cofres públicos, e não como evento comercial privado.

Suas 150 casas de espetáculo estaduais e municipais dispõem de elencos fixos de teatro, ópera e dança, que participam de 20 a 30 produções por temporada, em programação rotativa. Entre as casas mais importantes contam o Deutsches Theater de Berlim, o Berliner Ensemble (fundado por Bertolt Brecht) e o Münchner Kammerspiele. À frente dessas instituições está sempre o intendant (diretor-geral) que define o perfil artístico da casa, freqüentemente também através de montagens próprias.

Hans Otto Theater in Potsdam
Teatro Hans Otto, em PotsdamFoto: AP

Lutando para subsistir

Os governos financiam o setor com 2 bilhões de euros por ano, o equivalente a apenas 0,2% do total dos gastos federais, estaduais e municipais. Entretanto, não mais de 15% dessa quantia flui para o orçamento artístico. O restante alimenta um aparato técnico e administrativo inflacionado e protegido por sindicatos poderosos.

A cada ano ameaçado por novos cortes, o setor atravessa sérias dificuldades, sendo repetidamente forçado a legitimar sua função artística e social. Uma solução óbvia seria compensar o decrescente apoio financeiro por parte do governo com o recurso à iniciativa privada.

Entretanto, apesar de a crise financeira do setor de artes cênicas já ser longa e praticamente crônica, essa estratégia tem sucesso bastante limitado na Alemanha, pois faltam incentivos – por exemplo, vantagens fiscais às empresas que invistam em cultura – a esse tipo de patrocínio. É nesta inércia em repensar as estruturas de financiamento da arte que a respeitável tradição dos subsídios estatais se revela desvantajosa.

Falta de incentivo ao patrocínio privado

Ainda assim, são respeitáveis os números apresentados pelos teatros alemães, com uma média de 110 mil apresentações por ano. Cada temporada traz cerca de 5.800 montagens de 2.500 obras do teatro falado e musical. Ao todo, o setor emprega quase 40 mil pessoas, além de assegurar indiretamente um número ainda maior de empregos.

Ao lado das casas oficiais, a Alemanha conta, aproximadamente, com 280 teatros particulares, parte dos quais subvencionados; 40 teatros de festival – como Bayreuth ou o Ruhrfestspiele de Recklinghausen –; e alguns milhares de grupos independentes. Com pouco ou nenhum apoio oficial, estes últimos reagem admiravelmente às precárias condições de subsistência, atraindo uma média de 20 milhões de espectadores por ano.

Todavia, a parte do leão de todas essas apresentações cabe ao repertório convencional. Os textos mais representados nos teatros alemães são Fausto (Goethe), Nathan, o sábio (Gotthold Lessing) e Sonho de uma noite de verão (Shakespeare). No teatro infantil, O mágico de Oz (L. Frank Baum), A Rainha das Neves (H.C. Andersen) e Pinóquio (Carlo Collodi) atraem o maior número de espectadores.

O peso do convencional

Nesse panorama, é tanto mais notável o desempenho dos dramaturgos contemporâneos que conseguem se impor nas bilheterias, como é o caso de Elfriede Jelinek (Bambiland, Ulrike Maria Stuart), Yasmina Reza (Arte, Três versões da vida), ou Igor Bauersima (norway.today).

Exatamente como no restante do mundo, o público alemão de ópera tende a ser conservador. Estatísticas mostram que há décadas seus compositores favoritos continuam sendo os mesmos: Mozart (A flauta mágica, As bodas de Fígaro), Verdi (A Traviata, Rigoletto) e Engelbert Humperdinck (Hänsel e Gretel).

Phaedra an der Berliner Staatsoper Unter den Linden
Estréia de 'Phaedra', H.W. HenzeFoto: picture-alliance/dpa

Apesar do considerável sucesso alcançado por certos compositores modernos – Alban Berg,Benjamin Britten – ou mesmo contemporâneos – Helmut Lachenmann, Wolfgang Rihm, Hans Werner Henze – os sons dissonantes e experimentais continuam sendo exceção nas salas de ópera.

No setor de opereta, os veteranos Johann Strauss, Franz Léhar e Ralph Benatzky ditam as programações. O balé clássico é quase monopólio dos russos: Piotr Tchaikovsky (O Lago dos Cisnes, O quebra-nozes), e Serguei Prokofiev(Romeu e Julieta, Cinderela) de lideram as bilheterias.

Teatro, atividade política

Assim como a literatura, as artes plásticas e a música da Alemanha, as artes cênicas foram "recrutadas" pelo regime nazista (1933-1945). Neste período, elas funcionaram como mero instrumento de propaganda e apaziguamento, seus representantes mais ousados desapareceram quer no exílio, quer nos campos de concentração. Após a Segunda Guerra Mundial a cena alemã viu-se, portanto, diante do desafio de reconectar-se à atualidade do mundo.

Em 1949, Bertolt Brecht retornou dos Estados Unidos, fundando o Berliner Ensemble. Através de seus textos e montagens tornou-se uma figura central na cena teatral alemã. Ele constituirá modelo artístico e gabarito de relevância intelectual para as gerações seguintes de dramaturgos, ao expandir o palco em espaço de reflexão política e social.

Dreigroschenoper in Hamburg Mackie Messer
Montagem da 'Ópera dos três vinténs' em HamburgoFoto: AP

As técnicas de distanciamento (verfremdungseffekt) lembram constantemente ao espectador ser "apenas" teatro aquilo que presencia, no melhor dos casos, uma parábola: a catarse está interditada, o verdadeiro local de ação é a vida.

Os anos 60 reforçam a noção do palco como arena para discussão sociopolítica e veículo formador de opinião. O "teatro-parábola" brechtiano encontra sua culminância em Marat/Sade, de Peter Weiss (1964). Até meados da década de 70, autores como Rainer Werner Fassbinder, Rolf Hochhuth e Franz Xaver Kroetz continuarão confrontando o público com as desigualdades sociais e incitando-o à resistência.

Uma forma diferente de provocação se expressa no formalismo das "sprechstücke" ("peças de fala") do austríaco Peter Handke (Insulto ao público, Grito de socorro). Tematizando a impossibilidade da comunicação, suas repetições rítmicas de padrões lingüísticos e destruição das estruturas narrativas convencionais desorientaram público e críticos.

Retiro na subjetividade

O fracasso da Revolução Estudantil de 1967-68 e os atos concretos de terrorismo da Fração do Exército Vermelho (RAF), em meados de 1970, colocaram os intelectuais alemães em xeque. Como continuar a pregar ação, mudança, sabendo que a conseqüência última dessa idéia é carnificina sem sentido, violência cega? Não estará provado que as boas intenções de reforma social estão fadadas ao fracasso?

Esse estado de choque e perplexidade se expressa numa despolitização dos palcos alemães. Os dramaturgos tendem à auto-reflexão e à auto-referência, ao recolhimento no cotidiano, na subjetividade, no privado. Botho Strauss (Grande e pequeno, Trilogia do adeus) é um dos autores mais aclamados desse período.

Apocalipse e multimídia

Formas múltiplas de niilismo povoam o teatro alemão das décadas de 80 e 90. Visões apocalípticas, farsa e o grotesco ou dissolução da tragédia em utopia. A colagem é sua técnica preferida, o texto falado nivela-se com os outros elementos cênicos, música e gesto. O palco também abre as portas à multimídia, videoarte e mixed media. Não mais "cenário" da ação, ele se transforma numa superfície de projeção para a fantasia do espectador, sem conexão forçosa com o espaço e o tempo do mundo exterior.

Nessa fase, o conflito dramático dá lugar à pura eloqüência, à contemplação de fatos consumados; imagens e impressões isoladas vêm substituir os atos e cenas. Entre os principais representantes do "teatro pós-moderno" – termo controvertido – estão Tankred Dorst (Merlin) e Harald Mueller (Totenfloss – Barca dos mortos).

Peter Zadek Inszeniert Peer Gynt
Peter Zadek encena 'Peer Gynt'Foto: dffb

Heiner Müller (Germania, Quarteto e Hamlet-máquina) é possivelmente o maior nome do teatro alemão recente. O autor e diretor esteve entre os poucos artistas da extinta República Democrática Alemã a poderem circular com – relativa – liberdade entre as duas metades do país.

Sua obra tardia é marcada pelo desencanto crescente com o regime comunista, acabando por retirar-se no trabalho de encenador. Comparado a Brecht, Müller participou da direção conjunta do Berliner Ensemble por três anos, até falecer, em 1995.

O corpo contemporâneo em movimento

A dança está representada na maioria das casas de espetáculo subvencionadas da Alemanha, ao lado do teatro e/ou da ópera. Segundo as dimensões e importância do corpo de baile em questão, contam-se até 90 apresentações por temporada, também nas pequenas e médias cidades. Somadas as turnês, há um total de 5.700 espetáculos de dança por ano, somente nos teatros e óperas públicos.

Embora a Alemanha não possua uma alentada tradição de balé, como é o caso da França ou da Rússia, sua importância na dança contemporânea é indiscutível. A influência da Ausdruckstanz, criada por Mary Wigman nas décadas de 1920 e 1930, se faz sentir até nossos dias. Numa complexa relação de influências mútuas, essa "dança da expressão" foi, por exemplo, uma das fontes do butô japonês.

O tanztheater (teatro-dança) de Susanne Linke, Johann Kresnik, Sasha Waltz e, sobretudo, Pina Bausch há muito já atravessou as fronteiras nacionais. Aqui, a dança extrapola delimitações estilísticas tradicionais ("erudito x popular"), além de reivindicar o recurso à voz e ao gesto cotidiano.

Uraufführung des neuen Stücks von Pina Bausch in Wuppertal
Peça de Pina Bausch no Teatro de Wuppertal, 2007Foto: picture-alliance/ dpa

É sintomático (ver A vingança das imagens, abaixo) certos teóricos teatrais alemães teimarem em ver na ausência de trama e personagens definidos do tanztheater um "não-teatro", drama frustrado que perdeu seu suposto núcleo, a palavra articulada.

Bem mais do que a teatral, a cena de dança alemã mostra-se extraordinariamente permeável aos talentos estrangeiros, não hesitando em confiar-lhes a direção de suas companhias mais importantes. Citem-se aqui apenas o brasileiro Ismael Ivo, o norte-americano John Neumeier, ou a irlandesa Marguerite Donlon.

A vingança das imagens

Numa entrevista à TV, na década de 90, o então diretor do Festival do Ruhr, Hansgünther Heyme, declarou: "O teatro é importante como um museu para os grandes textos literários que foram escritos para o palco". Esta frase, partindo do homem à frente de um dos maiores eventos internacionais de artes cênicas da Europa, revela bem a relação ambivalente – diga-se mesmo, pervertida – dos alemães para com o palco.

Por um lado o país se orgulha de uma respeitável tradição cênica, do século 18 à Segunda Guerra Mundial. Naturalmente o que chegou a nós de toda essa intensa atividade foi pouco mais do que os textos escritos e os grandes nomes de Brecht, Büchner, Goethe ou Schiller. Tal fato se deve não só à própria efemeridade do evento teatral, como à crônica escassez de registros históricos sobre a arte da encenação.

Por outro lado, nas décadas do pós-guerra a intelligentsia alemã desenvolveu uma profunda e compreensível desconfiança em relação às imagens, aos grandes rituais, à teatralidade propriamente dita. Essa atitude, que em certos casos beira o preconceito banal, reforça a tendência cultural de considerar os textos "em estado puro", de esquecer que – exatamente como uma peça de Sófocles ou Shakespeare – eles não são mais do que a ponta desse iceberg que é o evento teatral.

Veteranos do setor, como o co-fundador da Schaubühne de Berlim Jürgen Schitthelm, lamentam a perda de importância da palavra e da própria voz nos palcos. Enquanto a atuação se torna mais atlética e dinâmica, a técnica vocal é negligenciada, também devido à influência da atuação televisiva e ao emprego de microfones e headsets em cena.

7 Fingers mit Loft in Hamburg
Grupo 7 Fingers no Teatro KampnagelFoto: dpa

No início do século 21, quando se procuram desesperadamente saídas para salvar os palcos, o universo das imagens e dos sons – este substrato do texto teatral impresso – cobra implacavelmente seu tributo.

Certas casas e grupos optam pela sedução fácil dos musicais na tradição anglo-americana (Abba – the show, O fantasma da ópera), enquanto outros apostam na "reciclagem" de roteiros cinematográficos de sucesso, como os de Woody Allen e Federico Fellini,Ou tudo ou nada (The full monty) ouDogville (Lars von Trier).

Perspectivas

Contudo, o efeito das pressões econômicas sobre o teatro alemão não parece ser exclusivamente pernicioso. Se parte da cena vê justificada sua evasão para a banalidade, garantindo pelo menos a bilheteria, uma outra aceitoou o convite para acordar do sono esplêndido dos subsídios inquestionáveis, e experimenta estratégias criativas para revitalizar as artes cênicas no país, legitimando sua existência e integrando-a no corpo social.

Uma possibilidade é procurar a interação direta com os contribuintes e potenciais espectadores. "Dias das portas abertas", workshops e projetos escolares, onde as casas de espetáculos informam o público e procuram integrá-lo em suas atividades, despertando interesse e dando nova dinâmica à relação produtor/consumidor de cultura.

Outra reação possível é – paradoxalmente – retornar à ousadia artística: montagens anticomerciais de excepcional qualidade, festivais com programa e concepção inusitados e radicais. Esta tem sido a opção de diretores/intendanten como Frank Castorff, Thomas Ostermeier ou o suíço Christoph Marthaler. Em boa parte dos casos, a estratégia é recompensada, no mínimo com um succès d'escandale.

Última atualização: janeiro de 2008