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Brasília polemiza

21 de abril de 2010

A apreciação de Brasília sempre polarizou e continua polarizando os pensadores. A visão europeia dessa utopia político-urbanística oscila entre a apologia da criação humana até denúncias de um totalitarismo a-histórico.

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Congresso NacionalFoto: J. Sorges

Antes de se tornar objeto da crítica ao modernismo, Brasília foi motivo de entusiasmo para os contemporâneos à sua fundação, em 1960. Os indícios desse entusiasmo se encontram até hoje, até nas mais breves definições desse radical projeto arquitetônico-urbanístico que viria a se tornar símbolo da concretização purista de um ideal estético programático.

Uma cidade "futurista", uma capital surgida do nada, construída em meio ao "vasto cerrado sem mata" no interior do país e inaugurada após apenas quatro anos de planejamento e construção. Essa é a tônica das descrições de Brasília que se reencontra agora, nos relatos da imprensa europeia, por ocasião dos 50 anos da fundação.

No imaginário dos europeus, e não só, o que parece fascinar na construção de Brasília é a ousadia quase temerária de erigir sobre o solo – e portanto em um espaço real – um projeto utópico e, por definição, sem-lugar. A busca de um Éden, de uma Babel, de um Eldorado intuído em algum lugar do sertão: esse foi o suposto impulso que levou os brasileiros – já no fim do século 19 – a tecerem planos de construção uma nova capital no centro do país, analisam os teóricos.

Um ponto de exclamação no horizonte, uma ideia heróica e romântica, uma acrópole em meio à infinita extensão do vazio. O entusiasmo por essa criação ex nihilo não escapa a nenhum teórico. E o que parece espantar a todos: o fato de essa cidade do futuro ter surgido em pleno Novo Mundo.

"A grande matança europeia tinha chegado ao fim, a nova cidade da qual já se falava há 30 anos finalmente poderia ser construída. E foi construída, mas não na Europa, e sim como capital nova no Novo Mundo: Brasília", descreve o teórico e urbanista alemão Dieter Hoffmann-Axthelm o projeto de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa que implementaria os ideais da Carta de Atenas, manifesto selado no 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam), em 1933. Portanto, uma utopia futurista do Velho Continente no Novo Mundo.

"Vista da Europa, Brasília é uma saga. Algo propriamente europeu – para o qual na própria Europa não havia espaço suficiente, nem ausência de historicidade o bastante, nem disposição destrutiva para tanto – acabou se revertendo em algo forasteiro no exato momento de uma realização pela primeira vez ilimitada", descreve Hoffmann-Axthelm.

Cidade como prolongamento da inteligência emancipada

No entanto, para um dos pensadores alemães que já teorizara sobre Brasília logo após sua construção, o fato de essa utopia ter se realizado especificamente nesse país sul-americano se devia à peculiaridade do que ele denominou "inteligência brasileira".

Max Bense
Max Bense (1910-1990)Foto: cc-by-sa-Elisabeth Walther-Bense

O contato do filósofo Max Bense com a vanguarda brasileira, e sobretudo com o concretismo paulistano, remonta a meados dos anos 50, quando ele conheceu na Suíça o poeta e semiólogo Décio Pignatari, cofundador – ao lado de Augusto de Campos e Haroldo de Campos – do Grupo Noigandres. O teórico de estética e entusiasta de cibernética realizaria, cinco anos após esse encontro, a primeira exposição de poesia concreta na Alemanha, e dez anos depois, publicaria o livro Inteligência Brasileira – Uma Reflexão Cartesiana (1965), resultado de suas visitas ao Brasil desde 1961.

"Não digo que o espírito brasileiro possua uma inquebrantável formação cartesiana em seu desenvolvimento linguístico e histórico", anota Bense em seu livro sobre os Brasil dos anos 1960. "Digo apenas que no extenso planalto de Goiás, onde se demarcou o Distrito Federal, há uma incontestável proclamação brasileira da inteligência cartesiana, vendo-se o plano e a concretização de uma nova capital, Brasília, como uma momentânea a extrema intensificação do poder criador universal."

O que fascina Bense no projeto de Niemeyer e Costa é a obstinação com que uma criação do espírito, a ideia catalisada pelo Plano Piloto, se impõe de forma quase improvável a uma natureza e realidade repletas de contingências adversas para tal. E assim Brasília aponta para uma civilização futura até então inimaginada. "Pois todo urbanismo é também uma notação que a civilização faz para o futuro, sobretudo o urbanismo que se embrenha na selva a fim de criar, feito uma gigantesca ilha artificial no cerrado, uma cidade cujo plano geral revela a forma de avião, e que hoje, tal como em seu início, é dependente do avião."

Na artificialidade de uma cidade planejada até os mínimos detalhes Bense reconhece a supremacia da criação humana sobre o pré-existente: "Apenas o que é feito se revela; o que é dado desaparece. Um poderoso artefato disposto sobre o círculo do horizonte; uma presença estética a meio-termo entre arquitetura e escultura, presente na região que limita as bacias hidrográficas do Amazonas, São Francisco e rio da Prata, sem o efeito surpreendente de estar à margem que se observa no Rio de Janeiro."

Aliás, o Rio de Janeiro é tomado como Bense como a antítese de Brasília. Enquanto o Rio teria se formado ao longo de um processo de configuração orgânica e portanto natural, Brasília – com sua pureza conceitual ou concepção purista – seria um sistema que se auto-organiza a partir de dados intrínsecos. "De fato, o Rio e Brasília encarnam duas ideias de fundação urbana: a cidade como prolongamento da natureza habitável e a cidade como prolongamento da inteligência emancipada:"

Para Bense, o ato criador representa o fluxo de uma consciência a-histórica, "que não olha para trás, mas está à espreita". Na visão do filósofo, a criação se revela de forma mais nítida e indubitável quando a obra se despoja das circunstâncias temporais e espaciais e se impõe como estrutura autogeradora em meio a um contexto esvaziado.

A beleza da barbárie no "modernismo branco"

Valorizada por Bense como condição da criação, a não-historicidade atribuída a Brasília por muitos viria a se tornar um dos principais motivos de crítica ao projeto modernista. O que singulariza Brasília, na visão de Dieter Hoffmann-Axthelm, é a absoluta falta de pressupostos do projeto. "Jamais o modernismo conseguiu se dissociar tão completmente de seus pressupostos históricos" como aqui, constata.

O que tornou Brasília alvo de acusações, assim como muitos outros projetos artísticos do modernismo, foi justamente essa dissociação do contexto geográfico e histórico. Por um lado, o projeto de Brasília surgiu da visão de uma sociedade igualitária; a estrutura urbana foi planejada para direcionar os habitantes a relações sociais e formas de convivência diferentes das estruturas de poder existentes até então no país. Essa exclusão do contexto – pressuposto de qualquer utopia – era inerente ao engajamento sócio-político do projeto; e paradoxalmente se tornou motivo para se condená-lo como alienação da realidade brasileira.

Se Bense ainda elogiava a dinâmica de um "sistema autopoiético", movido apenas a si mesmo, a impermeabilidade de Brasília a quaisquer mudanças por parte dos habitantes provocou rigorosas críticas de totalitarismo e de alheamento às realidades sociais.

Bildergalerie 50 Jahre Brasilia Flash-Galerie
Palácio da AlvoradaFoto: AP

Para o urbanista belga Pierre Puttemans, "a nova capital brasileira, um gesto político antes mesmo de ser um gesto urbanístico, monumentaliza os símbolos dos 'três poderes' e o progressismo de certa forma autoritário dos governantes brasileiros daquela época". No entanto, ressalva ele, "essa cidade nova que parece virar as costas ao passado, e caso se sirva dele apenas para encontrar referências antitradicionais, é o inverso vivo da cidade já morta que Albert Speer imaginou em Berlim".

Já o urbanista alemão Hoffmann-Axthelm reencontra o caráter a-histórico de Brasília nos projetos de reconstrução da Berlim bombardeada do pós-guerra que visavam a apagar as marcas do passado, tenham sido eles planejados sob o socialismo alemão-oriental (como no representativo segmento construído ao longo da Karl-Marx-Allee, no centro da cidade) ou no contexto de iniciativas ocidentais de revitalização urbana (como é o caso do Hansaviertel, nas imediações do Tiergarten). Para ele, esses projetos urbanísticos berlinenses soterram qualquer traço do que havia antes in loco, assim como Brasília nega radicalmente o contexto geográfico e histórico onde foi construída.

Quanto à analogia entre as cidades totalmente planejadas do modernismo e o "projeto integral" de Albert Speer "para uma nova capital do [Terceiro] Reich", Hoffmann-Axthelm é bem menos generoso que o urbanista belga. "Speer apresentou uma arquitetura da barbárie sem qualquer beleza. O modernismo branco criou uma beleza da barbárie – a saber, numa conexão casual entre subdesenvolvimento e modernismo estético. Isso é o que representam Brasília e Chandgarh [cidade planejada pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier na Índia]."

Entre os dois extremos por onde oscilam as leituras de Brasília – ato criador ou totalitário – as nuances da apreciação do projeto de Niemeyer e Costa são infinitas. Essa utopia do modernismo em pleno Planalto Central brasileiro não vai deixar de polarizar. Mesmo porque, após ser tombada pelo governo brasileiro em 1992, a cidade promete se manter intacta para futuras apologias ou críticas.

Anteriormente, em 1987, Brasília já fora declarada pela Unesco Patrimônio Cultural da Humanidade, um projeto modernista a adquirir esse status ao lado de apenas três outros marcos históricos do século 20: as instalações da Bauhaus em Dessau e Weimar (declaradas Patrimônio Mundial em 1996), o Memorial da Paz em Hiroshima, construído no lugar onde explodiu a primeira bomba atômica (1996) e o campo de concentração e extermínio de Auschwitz, criado pelo regime nazista alemão na atual Polônia (1979).

Autora: Simone Lopes
Revisão: Carlos Albuquerque