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Brasil: direito à memória histórica

29 de novembro de 2011

Em meio a críticas, projeto de lei que cria Comissão da Verdade é aprovado e deverá ser sancionado pela presidente Dilma Rousseff. Elaboração do passado sob a ditadura ganha relevância entre a opinião pública brasileira.

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Repressão ao movimento estudantil, em 1968Foto: AP

Transcorridas quase três décadas desde o fim da ditadura militar no Brasil (de 1964 a 1985), o Senado Federal aprovou, em votação simbólica, o projeto de lei que estabelece a criação de uma Comissão da Verdade – grupo de sete integrantes, voltado ao exame das violações aos direitos humanos cometidas durante o regime militar. Além disso, segundo seus mentores, a Comissão deverá "efetivar o direito à memória e à verdade histórica", promovendo "a reconciliação nacional".

Uma vez aprovado pela Câmara dos deputados e pelo Senado, o projeto segue para ser sancionado pela própria presidente, incumbida de indicar os nomes a integrarem a Comissão. Embora tenha como função primordial investigar casos de torturas, assassinatos e desaparecimentos durante o período da ditadura no Brasil, a Comissão não tem poderes persecutórios, ou seja, não disporá de meios para punir os supostos culpados, devido à Lei da Anistia, aprovada em 1979 ainda sob o governo ditatorial do ex-presidente e general João Batista Figueiredo.

Dilma Rousseff
Dilma Rousseff: presidente combateu a ditadura e foi vítima de torturasFoto: AP

"Ferida aberta para sempre"

Para fazer com que o projeto de lei fosse aprovado, o governo selou alianças com a oposição. Perante o Senado, o projeto de lei teve então seu texto final lido em sessão plenária pelo deputado Aloysio Nunes Ferreira, ex-guerrilheiro da Aliança Libertadora Nacional (ALN). "Temos uma ferida que não vai se fechar nunca. Qualquer que seja o resultado da Comissão da Verdade, a ferida não se fechará, mas espero que no trabalho dessa Comissão possamos encontrar uma resposta sobre mistérios com os quais convivemos e que não podem existir na democracia", afirmou o parlamentar.

A ministra da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência, Maria do Rosário, salientou por ocasião da aprovação do projeto a "vitória histórica", que inaugura "uma nova etapa desde a redemocratização. É um tributo aos que lutaram pela democracia, oferecendo até suas vidas", disse a ministra.

A comissão terá seis meses iniciais de trabalho preliminar e dois anos subsequentes para produzir um relatório conclusivo sobre os crimes cometidos entre 1946 e 1988. A amplitude do período a ser analisado pela comissão, que vai de 1946 – muito antes do início da ditadura no país – a 1988, três anos após seu fim, é uma das falhas do projeto, segundo organizações de defesa dos direitos humanos. O volume excessivo de material a ser avaliado enfraquecerá a intensidade do trabalho no que diz respeito aos "anos de chumbo" da ditadura, acreditam alguns ativistas.

"Militares conselheiros"?

Outra crítica feita à Comissão é que muito documentos relacionados a crimes cometidos durante a ditadura já desapareceram há muito dos respectivos arquivos, sobretudo após o recente debate público a esse respeito no país. A ministra Maria do Rosário não acredita, contudo, que tais dificuldades existam. "Há muito da história oral, o trabalho de ministros que me antecederam e fizeram levantamentos e o depoimento das famílias. O conjunto permitirá um bom trabalho", afirmou a ministra à imprensa.

Maria do Rosario Nunes Brasilien
Maria do Rosário: ministra dos Direitos HumanosFoto: picture-alliance/dpa

Outro ponto polêmico é a indicação dos nomes que irão integrar a Comissão, cujos membros, de nacionalidade brasileira, serão indicados pela presidente Dilma Rousseff. "Militares ou não", eles serão nomeados segundo critérios como idoneidade, imparcialidade e desvinculamento de partidos políticos ou cargos executivos.

Representantes de associações de ex-presos e perseguidos políticos, bem como grupos de familiares de vítimas da ditadura, reivindicam que os membros da Comissão não deveriam jamais pertencer ao quadro das Forças Armadas, para evitar qualquer risco de parcialidade nas apurações. O projeto de lei, contudo, não impede a participação de militares como conselheiros.

O caso Ustra-Merlino

"Conhecer o passado para entender o presente e construir o futuro" é uma das máximas disseminadas entre a avalanche de documentos e opiniões que acompanharam os passos do projeto de lei até a aprovação da Comissão da Verdade. Entre manifestos de artistas e intelectuais e abaixo-assinados movidos por cidadãos comuns, o resgate da memória do período da ditadura poucas vezes esteve tão presente no país como agora.

Embora, no decorrer dos anos pós-ditadura, diversos projetos e associações tenham se empenhado pela recuperação da memória do período que sucedeu ao golpe militar de 1964. Um deles, por exemplo, é o Coletivo Merlino, que tenta passar a limpo a história do jornalista Luiz Eduardo Merlino, ex-militante do POC (Partido Operário Comunista), há 40 anos.

Em ação movida na Justiça brasileira, a família da vítima acusa o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra de ter sido responsável pelas torturas que levaram à morte de Merlino, aos 22 anos, nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, em julho de 1971. Entre as testemunhas que depuseram a favor do coronel estão o ex-presidente José Sarney e o ex-ministro Jarbas Passarinho.

Elaboração através da arte

Paralelamente a processos jurídicos e debates parlamentares, também a cinematografia brasileira já se voltou diversas vezes, direta ou indiretamente, para a temática dos anos de ditadura no país. Em outubro último, o longa-metragem Hoje, da diretora Tata Amaral, foi premiado em diversas categorias no Festival de Cinema de Brasília, um dos mais conceituados do país.

No filme, a personagem Vera recebe uma indenização do governo pelo desaparecimento do marido guerrilheiro, supostamente ocorrido 24 anos antes, durante os anos de chumbo da ditadura. Pouco depois, ele, contudo, reaparece, provocando uma revolução pessoal e um acerto de contas simbólico e real na vida dos personagens.

Installation Insepultas
Instalação 'Insepultas', da artista Marie Ange BordasFoto: Marie Ange Bordas

"Sob a ilusão do presente"

No campo das artes visuais, a artista Marie Ange Bordas, gaúcha radicada em São Paulo, desenvolveu uma pesquisa pessoal sobre mulheres que foram vítimas de violência, entre estas da ditadura brasileira, tendo criado, a partir dos dados coletados, um projeto de instalação intitulado Insepultas.

"Décadas depois, o Brasil ainda insiste em esquecer, incapaz de fazer o trabalho de enfrentar o passado e punir culpados. Beneficiando-se da curta memória de um povo que vive sob a ilusão do presente, as classes dominantes, e a grande mídia nacional, que sustentaram por tanto tempo o golpe, insistem em esconder a verdade e proteger-se no silêncio que nem mesmo a eleição de uma 'ex-militante' conseguiu ainda quebrar", afirma a artista em texto que acompanhou o projeto.

Autora: Soraia Vilela
Revisão: Roselaine Wandscheer