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Com a PEC das Domésticas, a chance de uma reparação histórica

Fernanda Azzolini5 de abril de 2013

Nova lei, que pode beneficiar 7,2 milhões de pessoas, é bem recebida pela federação de trabalhadoras domésticas e por especialistas, que veem nela a chance de eliminar um dos resquícios da escravidão.

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Foto: picture alliance/dpa

"É como se fosse da família." A frase sutil reflete a relação de décadas no Brasil entre patrão e trabalhadora doméstica e, apesar de parecer inofensiva, abria o precedente para a exploração laboral. Nesta terça-feira (02/04) foi promulgada a chamada PEC das Domésticas e, com ela, abriu-se a esperança de um tratamento mais justo para essa relação trabalhista que, quase sempre, era tratada de forma mais familiar do que profissional.

A Emenda Constitucional nº 72 é um passo importante na luta pela igualdade de direitos trabalhistas, como ressalta Creuza Maria de Oliveira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Mas a batalha, diz, ainda não acabou.

"Vamos aguardar a regulamentação para ver se não vai haver nenhuma mudança, nenhum retrocesso. Na hora de esmiuçar as coisas, às vezes, podem vir algumas surpresas", alerta.

Com a lei, surgiu a polêmica de um risco de demissões em massa, já que os encargos trabalhistas vão aumentar, e muitos empregadores não teriam condições de arcar com esse gasto. Para Creuza, isso vai acontecer, apesar de poder haver uma queda no número de empregadas domésticas ou a transferência para o trabalho de diarista.

"Agora só vai ter quem pode. Aqui no Brasil, todo mundo tinha trabalhador doméstico, mesmo quem ganha dois salários. E aí a trabalhador não tinha nenhum benefício, trabalhava 16 horas por dia sem ganhar nada a mais. Agora que o benefício veio para o nosso lado, os empregadores estão assustados", comenta.

O sociólogo Joaze Bernardino, especialista nas relações de trabalho doméstico, afirma que, apesar da demissão ser um risco real, a opinião expressada pela mídia é uma crítica velada à conquista.

"Há um conservadorismo muito grande na sociedade brasileira. Deparamos-nos com pessoas, por exemplo, muito progressistas quando se trata de defesa do meio ambiente, direitos homoafetivos ou igualdade de gênero. Mas, quando se trata da trabalhadora doméstica, o 'senhorzinho escravocrata' renasce", afirma.

Lei para os patrões

A PEC das Domésticas gerou mobilização por parte de uma ONG de empregadoras. Eles reivindicam uma lei também para os patrões e justificam dizendo que o aumento dos pagamentos trabalhistas pode gerar cerca de 800 mil demissões.

Com a alegação de que empregador doméstico não é uma empresa, mas uma pessoa física, sem fins lucrativos, sem subsídios governamentais ou anistias de impostos, a entidade busca 1 milhão de votos para, então, levar à presidente Dilma Rousseff o pedido de uma medida provisória que contemple benefícios fiscais aos empregadores.

A coordenadora da ONU Mulheres Brasil e Cone Sul, Rebecca Tavares, é a favor de simplificações para facilitar que o empregador cumpra todos os pontos da lei, mas alerta que isso não pode comprometer o que já foi conquistado: "A simplificação é positiva e poderia diminuir o impacto da PEC na questão do desemprego, mas, por outro lado, diminuir multas ou sanções em caso de não cumprimento da lei não seria bom."

Uma pesquisa divulgada nesta semana, feita pela Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com a ONU Mulheres Brasil e Cone Sul, avalia o impacto do trabalho doméstico na economia brasileira. De 2005 a 2011, a demanda de trabalhadores domésticos se manteve estável, já a média salarial teve um incremento de 10%. Ainda de acordo com o estudo, foram gerados 630 mil empregos indiretos em razão da melhora do poder aquisitivo dos trabalhadores domésticos e um incremento de 19 bilhões de reais.

Apenas 20% com carteira assinada

A mais recente conquista não veio facilmente. O direito dos empregados domésticas parecia perdido, quando, em 1943, a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) os excluiu dos direitos trabalhistas. Somente em 1972, por meio da Lei nº 5859, receberam o direito da carteira assinada. Apesar disso, de acordo com Creuza, hoje apenas pouco mais de 20% têm registro na carteira de trabalho.

Em 1988, com a nova Constituição, ganharam outros direitos sociais, como salário-mínimo, férias anuais remuneradas, licença gestante, aposentadoria e integração à Previdência Social. O último benefício antes da PEC das Domésticas veio com a Lei n.º 11.324, de 19 de julho de 2006. Com ela, os trabalhadores domésticos passaram a ter o direito a férias de 30 dias, feriados civis e religiosos e proibição de descontos de alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados durante o trabalho.

Brasilianischen Gesetze für Putzfrau - PEC das Domésticas
Creuza Maria de Oliveira, presidente da Federação de Domésticas, ganhou Prêmio Direitos Humanos 2011Foto: Valter Campanato/ABr

A última conquista, que já está valendo desde a data da promulgação da PEC das Domésticas, é a carga de trabalho não superior a 8 horas diárias e 44 horas semanais, e a remuneração de hora extra de, no mínimo, 50% a mais que a normal. Alguns pontos ainda precisam passar por regulamentação, entre eles, FGTS (fundo de garantia por tempo de serviço), auxílio creche e pré-escola, adicional noturno, seguro desemprego e seguro contra acidente de trabalho e indenização.

Raízes históricas

Em 1984, em uma de suas últimas entrevistas, Gilberto Freyre disse que, embora "notável para a história da formação brasileira", a abolição da escravatura havia sido "incompleta". Sua principal obra, Casa grande e senzala, é dos anos 1930, exatamente a época em que as trabalhadoras domésticas brasileiras começaram a se organizar pelos seus direitos.

Para Joaze Bernardino, o problema racial no Brasil ainda é grande, mas, aos poucos, vai se transformando. "Não somos a tal propalada democracia racial. A lei das domésticas, assim como inúmeros outros acontecimentos que estão em curso na sociedade brasileira, talvez nos ajude a superar a lógica da casa grande e da senzala."

A presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas afirma que, nos dias atuais, o mesmo princípio descrito no livro ainda existe, já que ainda há trabalhadoras que dormem na casa onde trabalham. No entanto, ela acredita que, com a regulamentação do adicional noturno, esse costume provavelmente vai acabar. Creuza afirma que parte da mudança precisa acontecer na mentalidade da sociedade, tanto dos patrões ao se sentirem superiores, como dos empregados ao se sentirem inferiores. Já isso, nenhuma lei tem o poder de mudar.