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Como fazer uso da Lei Antidiscriminação na Alemanha

26 de julho de 2023

Em vigor desde 2006, instrumento veta discriminação com base em origem étnica ou fenótipo, sexo ou gênero, religião ou crença, deficiência ou doença crônica, idade ou identidade sexual, sob pena de indenização.

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Protesto contra racismo em Karlsruhe em 2020. Uma mulher branca e mascarada, cercada por outros manifestantes, segura uma placa em alemão onde se lê: "Um ser humano é um ser humano".
Protesto contra racismo em Karlsruhe em 2020. Foto: Oliver Hurst/GES/picture alliance

Imagine a seguinte situação: Felipe, um estudante brasileiro vivendo na Alemanha, adentra uma loja para comprar um par de chinelos horas antes de partir para uma viagem de férias.

Como se trata de uma compra de baixo valor e o rapaz está com pressa, ele dispensa a nota fiscal e sai com a compra em mãos – até ser parado pelo segurança alguns metros adiante, na porta do estabelecimento. "Posso ver a nota fiscal?"

A dupla volta ao caixa para esclarecer o ocorrido, e Felipe já está girando nos calcanhares para sair dali a tempo de pegar seu trem, quando o segurança pede para inspecionar a mochila dele. A cena toda é observada por outros clientes. Felipe se sente humilhado.

Detalhe: ele é negro.

A cena é fictícia, mas foi reconstruída com base em relatos semelhantes que chegam ao Escritório Federal de Combate à Discriminação (Antidiskriminierungsstelle des Bundes), que registra denúncias e provê aconselhamento nos termos da Lei Antidiscriminação alemã, que serve para amparar vítimas em situações como a exposta acima.

Dados de 2022 registram procura recorde pelo órgão, com o registro de 6.600 denúncias – 43% eram por racismo.

O que diz a lei

Promulgada em agosto de 2006 por pressão da União Europeia, que impôs diretrizes de combate à discriminação aos países-membros do bloco, a Lei Geral de Tratamento Igualitário (Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz, ou AGG) proíbe a discriminação com base em: 1) origem étnica ou fenótipo (racismo); 2) sexo ou gênero; 3) religião (ou ausência dela), crenças e valores;  4) deficiência ou doença crônica; 5) idade; ou 6) identidade sexual.

A lei vale para transações comerciais cotidianas, protegendo cidadãos contra discriminação de atores privados em situações como uma ida ao banco ou ao restaurante, ao supermercado ou à boate, mas também na busca por um emprego ou um apartamento, por exemplo.

Porém, só nos chamados "negócios em massa" é que o cidadão que se sentir discriminado pode apelar à Justiça para defender seus direitos. O termo diz respeito aos ramos de bens de consumo e prestação de serviço padronizada, em que as características físicas de cada indivíduo não necessariamente têm relevância para a transação comercial – faz-se negócio com qualquer consumidor que possa pagar.

A lei também abarca relações trabalhistas, impondo a empregadores, por exemplo, o dever de de zelar por um ambiente de trabalho igualitário, livre de discriminação, e de promover processos seletivos justos. Também veta o bullying nesses espaços – quando um dos fatores citados em lei se tornam alvo constante de comentários e brincadeiras constrangedoras – e o assédio sexual.

Casos de discriminação por critérios aparentemente neutros também podem ser sancionados pela lei – por exemplo, anunciar num processo seletivo que serão escolhidos apenas candidatos que tenham alemão como língua materna quando não há justificativa plausível para tal, algo que indiretamente resultaria na discriminação de migrantes.

O texto, porém, diz que a discriminação indireta pode ser justificada se os critérios em questão forem "proporcionais e necessários" – algo, segundo especialistas, que na prática faz com que esses casos sejam menos frequentes e mais difíceis de levar adiante nos tribunais.

Punição para quem discrimina e reparação para vítima

Pessoas afetadas podem exigir na Justiça o fim da discriminação concreta e uma indenização por danos sofridos, tanto materiais quanto morais – no caso dos danos materiais, porém, a indenização só vale caso a pessoa que discriminou seja de fato responsabilizada pela situação.

O Escritório Federal de Combate à Discriminação registra em sua página algumas decisões judiciais emitidas desde 2015, com indenizações girando em torno de 1.000 a 2.500 euros a pessoas que, por exemplo, foram barradas na porta de um clube por serem negras, tiveram a matrícula em uma academia negada por causa da origem étnica delas ou acabaram preteridas por uma imobiliária por terem um nome que soava estrangeiro. Em 2022, uma pessoa não-binária foi indenizada em 1.000 euros porque, para viajar de trem, foi obrigada a se identificar no bilhete como homem ou mulher.

No âmbito profissional, empresas e empregadores são obrigados a tomar providências quando há discriminação no ambiente de trabalho entre colegas, podendo chegar mesmo a demiti-los. Funcionários também podem se recusar a cumprir ordens de um superior que levem à discriminação.

Fui discriminado. O que fazer?

Segundo o Escritório Federal de Combate à Discriminação, ao sentir-se discriminado, ou ver alguém ser discriminado, o primeiro passo é manter a calma, inquirir qual o motivo do tratamento diferente e ver se, de fato, a explicação procede ou é apenas um pretexto para agir de forma preconceituosa. Na sequência, é preciso angariar testemunhas, já que elas ajudarão a reconstruir o episódio mais tarde diante das autoridades. O prazo para protocolar a queixa é de dois meses.

É possível ainda denunciar o caso junto ao escritório e pedir aconselhamento, que também pode ser buscado junto a alguma outra entidade regional, seja pública ou privada.

Não importa se as pessoas que discriminaram tinham ou não a intenção de fazê-lo; importa se a pessoa afetada de fato foi prejudicada ou não pelos termos da lei – algo, porém, que cabe à vítima demonstrar, enquanto ao acusado resta provar que agiu baseado em critérios razoáveis e objetivos, ou que não teve culpa no episódio.

O ordenamento jurídico alemão também prevê penas mais duras para discursos explícitos que incitem a violência contra grupos com base em nacionalidade, raça, religião ou etnia – isso, sim, tipificado como crime. Esse entendimento tem sido aplicado a entidades neonazistas organizadas quando há potencial de dano à ordem pública.

Críticas à lei

A reforma da Lei Antidiscriminação está prevista no contrato do governo de coalizão firmado entre sociais-democratas, verdes e liberais. Um dos principais pontos criticados é o prazo para protocolar queixa, considerados por alguns muito curto.

Há também quem aponte um vácuo legal para discriminação com base em classe social – um fator relevante no acesso ao sistema educacional na Alemanha, setor sobre o qual os estados federativos têm autonomia para decidir, e onde o alcance da lei é limitado.

A lei também é considerada por alguns insuficiente por, por exemplo, não necessariamente impedir a discriminação de pessoas que amamentam, que ainda podem ser barradas em restaurantes, e não oferecer garantias robustas a pais e mães que regressam ao trabalho após licença parental.

E enquanto a discriminação no mercado de trabalho ainda é realidade – poucas são as empresas, por exemplo, que fazem processos seletivos anonimizados a fim de evitar vieses contra pessoas que usem um hijab ou tenham um nome diferente, por exemplo –, no caso de discriminação de locatários no mercado imobiliário a lei só vale para quem tem mais de 50 imóveis.

Outro ponto, segundo o Escritório Federal de Combate à Discriminação, é que apesar de a discriminação por parte de agentes do Estado já ser vetada pela Constituição, é preciso oferecer uma proteção mais robusta diante de episódios envolvendo órgãos e agentes públicos.

Lutando contra o racismo na Alemanha