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Almerinda Farias Gama: uma datilógrafa negra na Constituinte

23 de novembro de 2023

Feminista negra, que se indignou com as diferenças salariais entre homens e mulheres, presidiu sindicato e lutou pela igualdade direitos.

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Almerinda Farias Gama
Almerinda Farias Gama foi uma das primeiras mulheres a atuar na políticaFoto: Acervo CPDOC/FGV

"Eu sempre, por instinto, me revoltei contra a desigualdade de direitos entre homem e mulher", dizia Almerinda Farias Gama (1899-1999), precursora do ativismo feminista no Brasil e uma das primeiras mulheres a atuar na política.

Negra, nascida em Maceió, ela começou a trabalhar como datilógrafa em Belém, para onde se mudou ainda jovem, logo após a morte do pai. Foi nessa época que adquiriu aquilo que hoje chamamos de consciência de gênero: ela notou que, no mercado de trabalho, homens ganhavam mais do que as mulheres — mesmo quando ocupavam as mesmas funções. E isto a incomodou.

Em 1929, ela se mudou para o Rio de Janeiro, então capital da República, e foi lá que começou sua atuação política. Presidiu o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos e fez campanha para que a cientista Bertha Lutz (1984-1976) assumisse a presidência da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Começaria ali uma amizade entre ambas, que chegaram a trocar diversas cartas ao longo da vida.

Gama foi uma das duas únicas mulheres a participar da Assembleia Constituinte que trabalhou de a 1934 — a outra foi a médica Carlota Pereira de Queirós (1892-1982). Gama atuou como delegada classista, representando o sindicato que presidia. Queirós foi deputada constituinte.

Passada a Constituinte, ela tentou seguir carreira política, mas não conseguiu se eleger deputada federal. Dirigiu o Partido Proletário do Brasil — extinto com o Estado Novo e seguiu militando pelos direitos das mulheres.

Teve uma presença histórica na Federal pelo Progresso Feminino. Ela costumava se encarregar de secretariar as reuniões, mas, ciente de que a pauta precisava circular pela sociedade, depois redigia notas com os temas discutidos e enviava para a imprensa — de certa forma, ela fazia um trabalho de assessoria de comunicação, embora informal.

"Ela atuou em muitas frentes e a pesquisa histórica nos revela uma personagem com um grande senso comunitário, uma pessoa que sempre pensou a luta por direitos de maneira coletiva", diz a jornalista e pesquisadora Cibele Tenório, autora de uma biografia de Gama que venceu no mês passado o Prêmio Todavia de Não Ficção — e deve ser publicada em breve.

A contribuição da sindicalista "na construção institucional e política do movimento de mulheres do país" é um dos pontos destacados pela biógrafa como fundamentais da trajetória de Gama. "Os arquivos mostram que sua atuação não era tímida ou esporádica", ressalta.

Importância do resgate de seu legado

"Era uma mulher negra e integrante da classe trabalhadora assalariada sendo peça fundamental dentro dessa engrenagem que se articulava e fazia pressão em várias frentes para que as mulheres tivessem direito à igualdade política e jurídica", comenta Tenório.

Gama presidiu o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos
Gama presidiu o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos Foto: Acervo CPDOC/FGV

Ela complementa lembrando que há também o "legado pessoal" da ativista, como uma "mulher negra atuante no pós-abolição". "Ela parece ignorar os discursos que apontavam que mulheres, e ainda mais mulheres negras, não eram bem-vindas no universo da política institucional", analisa. "Foi, de fato, uma das primeiras mulheres negras a apresentarem seu nome para um cargo político no Brasil."

O resgate de personalidades históricas como a de Gama serve para reparar um apagamento e demonstrar o papel da luta feminista ao longo do tempo. "Ela foi de uma época em que uma mulher servir a um homem era uma coisa muito comum, parte do que se espera da sociedade. Mas rompeu com isso", enfatiza a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Rosin lembra que a luta por equidade salarial entre homens e mulheres, travada pela sindicalista há 90 anos, só se tornou lei neste ano de 2023. "Deveríamos conhecê-la muito mais. Seu legado foi fundamental. Ela correu para que hoje pudéssemos voar."

"Gama ainda não recebeu atenção das pesquisas. Não temos nada que trate diretamente sobre ela", reconhece a historiadora Glaucia Fraccaro, professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro Os Direitos das Mulheres - Feminismo e Trabalho no Brasil. "Ela desenvolveu uma visão de mundo, de política e de cidadania que compõe uma grande parte do que entendemos como história do Brasil."

Negritude em tempos de "democracia racial"

Sob a perspectiva contemporânea é possível entender o engajamento de Gama muito mais voltado para a questão de gênero do que para a questão racial. "Embora tenha atuado em muitas frentes, a pauta que interessava a ela era a das mulheres e a dos trabalhadores", diz Tenório. "Suspeito inclusive que foi pelo machismo que ela encontrou no mundo do trabalho que ela decidiu se juntar às sufragistas. Ela demostrava muita indignação com a diferença salarial entre homens e mulheres."

A biógrafa salienta que sobre a questão racial "é preciso levar em consideração o contexto histórico", já que Gama "nasceu 11 anos depois da abolição da escravidão do país e seus discursos de maior atuação foram na década de 1930, justamente o período em que o discurso do Brasil como uma grande democracia racial começava a surgir".

Tenório não encontrou nenhum indício de militância racial na vida de Gama, mas, sim, "evidências de que ela conhecia e era próxima de pessoas que faziam parte da Frente Negra Suburbana". "Então acredito que ela estava a par das pautas que a Frente Negra Brasileira encampava à época", ressalta.

"Cidadania, direitos para as mulheres, racismo, como tudo, são coisas históricas. Ou seja, seus sentidos mudam com o tempo", lembra a historiadora Fraccaro. "No começo da república, o que hoje entendemos ser uma fantasia, a democracia racial, era entendida como uma ferramenta importante para a negociação política e a diminuição da violência e dos conflitos sociais."

"Quando olhamos para o passado com os olhos fixados nos conceitos do presente, podemos correr o risco de não ver como havia uma intelectualidade negra que era atuante na imprensa e na política, como era o caso de Almerinda Farias Gamas", ressalta ela.

No dia 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra em todo o Brasil. Data é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro. A DW publica, até o dia 24 de novembro, uma série de perfis de personagens que deixaram marcas na história brasileira e que são pouco lembrados ou conhecidos