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Dinamarca reconhece sexo sem consentimento como estupro

Louise Osborne
18 de dezembro de 2020

Ato precisava envolver violência física, ameaça ou coerção para ser considerado crime, e a maioria dos casos acabava sem condenação. Reforma aprovada no país escandinavo ainda não é regra em muitas nações europeias.

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Menina chorando na cama esconde o rosto com as mãos
Dos 80 mil estupros denunciados em 2015 na UE, cerca de nove em cada dez vítimas eram mulheres ou meninasFoto: Imago/Ritzau Scanpix

Era de madrugada quando Kirstine Holst foi acordada por um homem entrando em seu quarto. Ele tentou ter relações sexuais com ela, embora ela repetidamente lhe pedisse para parar.

"Eu não sabia o que estava acontecendo. Nunca tivemos nenhuma proximidade romântica, e ele não conseguia aceitar o meu 'não'. Foi então que ele colocou o braço em volta da minha garganta e eu percebi que minha vida corria perigo", disse ela à DW.

Holst, que havia viajado a Copenhagen para uma reunião, estava hospedada no quarto de hóspedes de um amigo quando isso aconteceu. E foi precisamente esse homem, que ela considerava seu amigo, quem invadiu o seu quarto. 

"Não lutei contra ele. Tentei conversar, para acalmá-lo. Percebi que ele não ia parar. Acho que meu cérebro simplesmente se rendeu e desconectou, pois doía muito", lembra.

Na base do consentimento

Demorou um pouco para ela aceitar, mas Holst agora descreve o que sofreu como estupro. Ela contou o que aconteceu à polícia, e seu agressor até chegou a ser julgado por um tribunal, mas acabou sendo absolvido. Embora os juízes tenham aceitado a versão da vítima de que ela rejeitou as investidas do acusado, os advogados não conseguiram provar, de forma incontestável, que ele tentou machucá-la, conta.

Mulheres vestidas de vermelho posam na Escadaria Espanhola enquanto gravam um vídeo para aumentar a conscientização sobre a violência de gênero antes do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres em 25 de novembro, em Roma, Itália, 26 de outubro de 2020
Protestos têm sido realizados no mundo todo para chamar atenção para a questão da violência contra a mulherFoto: Remo Casilli/Reuters

A paralisia é uma resposta comum relatada por sobreviventes de estupro e, ainda assim, em muitos países, isso não deixa margem para uma ação penal. Na Dinamarca, como na maioria dos países da União Europeia (UE), o estupro não é definido com base no consentimento. Em vez disso, para o ato ser considerado crime os promotores precisam provar que houve violência física, ameaças ou coerção, ou que a vítima foi incapaz de resistir ao ataque.

Mas isso está mudando. Nesta quinta-feira (17/12), foi aprovada na Dinamarca uma reforma na lei de estupro, colocando o foco no consentimento. Toda relação sexual em que não há livre consentimento, independentemente de violência física, agora será considerada estupro.

"Vítimas de estupro precisam de uma proteção jurídica muito maior", afirmou o ministro da Justiça dinamarquesa, Nick Hækkerup. "Precisamos mudar o entendimento da sociedade sobre o que é estupro, e uma nova cláusula de estupro baseada em consentimento é um marco nesse sentido."

Paraíso para a igualdade de gênero?

A Dinamarca é considerada um dos melhores países da União Europeia no quesito igualdade de gênero, perdendo apenas para a vizinha Suécia num índice elaborado anualmente pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero.

O país nórdico, porém, foi duramente criticado por sua chamada "cultura do estupro", que a Anistia Internacional qualificou como "disseminada" num relatório publicado no ano passado. Segundo a organização, o problema é mascarado pela reputação do país.

"Trata-se de um obstáculo à mudança, pois as pessoas presumem que a igualdade de gênero foi alcançada na Dinamarca. Mas quem se aprofunda nas pesquisas sobre igualdade de gênero, vê que eles não levam em consideração a violência baseada em gênero. E isso é crucial para a Dinamarca realmente alcançar a igualdade de gênero", avalia Anna Blus, pesquisadora da Anistia Internacional sobre os direitos das mulheres na Europa.

Segundo dados do Ministério da Justiça dinamarquês conferidos pela Anistia, cerca de 6.700 mulheres são vítimas de estupro ou de tentativa de estupro todos os anos na Dinamarca. No entanto, em 2019 apenas 1.017 estupros foram denunciados à polícia dinamarquesa, resultando em somente 79 condenações.

"Algumas mulheres me disseram que, como seus casos não estavam previstos na lei, elas não achavam que se tratava de estupro", diz Blus, acrescentando que a reforma pode fazer com que mais sobreviventes denunciem tais casos no futuro. "A longo prazo, debates como esse têm um impacto na compreensão das pessoas e, se forem incluídos na educação sexual, também podem prevenir o estupro a longo prazo."

A jornalista Kirstine Holst
Kirstine Holst fundou uma organização para acompanhar a implementação da reforma da lei de estupro na DinamarcaFoto: Privat

Cultura de consentimento, não de estupro

A prevalência da violência contra as mulheres continua a ser um problema em toda a Europa. De acordo com estatísticas da UE, cerca de uma em cada três mulheres já sofreu violência física e/ou sexual. Os números também mostram que a violência contra elas aumentou desde o início da pandemia de coronavírus.

Com a reforma da lei, a Dinamarca se torna um dos 12 países europeus, incluindo Alemanha, Reino Unido e Suécia, a reconhecer o sexo sem consentimento como estupro. O mesmo caminho também poderá ser seguido por países como Espanha e Holanda, que já anunciaram planos de alterar suas legislações sobre o tema. 

As mudanças alinham ainda mais os países com a Convenção de Istambul de combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, um acordo assinado por todos os países da UE e já ratificado por muitos. A maioria das nações, contudo, ainda não o implementou totalmente.

Ainda assim, há progressos. E os especialistas esperam que as reformas em países como a Dinamarca levem a mudanças na forma como a sociedade enxerga o estupro.

"É importante saber como isso se traduzirá em mudanças culturais, conscientizando os profissionais do sistema jurídico e mudando o foco dos debates de uma cultura chamada de estupro para uma cultura de consentimento. Isso é do interesse de todos", diz Blus.

Para a vítima Kirstine Holst, a mudança chegou tarde demais. E não está claro se a reforma faria alguma diferença no resultado de seu julgamento.

"O triste é que isso não interfere no meu caso. Mas me sinto aliviada, pois agora, caso minhas filhas ou meu filho passem pelo mesmo que eu, as circunstâncias serão melhores", afirma. "Isso é para meus filhos."

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