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Distúrbios sociais nas telas: destino do cinema brasileiro?

Soraia Vilela16 de fevereiro de 2006

Atrizes e diretores brasileiros em Berlim debatem cinematografia do país e combatem "cobrança monotemática" de que filmes brasileiros devam sempre abordar questões sociais.

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'Atos dos Homens', de Kiko GoifmanFoto: presse

"Uma das dificuldades de fazer cinema hoje no Brasil é conseguir despertar o interesse das classes de A a Z", observa a atriz Fernanda Torres, presente em Berlim para divulgar Casa de Areia, em que atua ao lado da mãe, Fernanda Montenegro, sob direção do marido, Andrucha Waddington.

"Vejo o cinema brasileiro preso a ter que denunciar questões sociais, mas também temos o direito de discutir outras coisas. Ao mesmo tempo em que o Brasil tem problemas sociais, tem também Euclides da Cunha. Atualmente tenho problema com mais filmes ainda sobre tráfico de drogas", criticou a atriz, em debate realizado na embaixada brasileira na capital alemã.

Cunho social

Berlinale 2006 Casa de areia | The House Of Sand
Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, em 'Casa de Areia'Foto: presse

Exceto o longa de ficção Casa de Areia, os outros filmes presentes em Berlim este ano não passam ao largo de aspectos problemáticos da realidade social brasileira.

O documentário Meninas, de Sandra Werneck e Gisela Camara, por exemplo, acompanha quatro adolescentes abaixo de 15 anos grávidas em favelas ou na periferia do Rio de Janeiro. "Embora o filme tenha um cunho social, eu quis falar, acima de tudo, da maternidade", diz Sandra Werneck.

"Realidade mais forte que cronogramas"

Atos dos Homens, de Kiko Goifman, que tem sua estréia mundial em Berlim e é um dos nomeados ao prêmio Wolfgang Staudte, da seção Fórum do Jovem Cinema, foi pensado originalmente como um filme sobre pessoas que tivessem sobrevivido a massacres no Brasil. "O filme foi inspirado em Atos de Deus, um curta de Peter Greenway da década de 80, sobre pessoas que sobreviveram a raios", conta o diretor.

Um mês antes do início das filmagens, em março de 2005, porém, houve uma chacina em Nova Iguaçu, que deixou um saldo de 29 mortos. "Resolvi mudar o roteiro e enviei uma carta aos produtores, chamada 'A realidade é mais forte que nossos cronogramas'", relembra Kiko Goifman.

Desvio do olhar

Kiko Goifman
Kiko Goifman

Embora Kiko seja mineiro e viva em São Paulo, a decisão caiu sobre a Baixada Fluminense como locação. Mesmo ouvindo conselhos de outros profissionais – como os da cineasta Kátia Lund – de que uma aproximação de grupos de extermínio poderia ser perigosa, o diretor optou por desviar o foco do documentário, abandonando a idéia de abordar sobreviventes de massacres "com um outro olhar mais etnográfico", conta o diretor.

Outro ponto que complicava a questão, segundo o cineasta, era "um certo lado de invisibilidade da chacina ocorrida em Nova Iguaçu. Muitos dos meus amigos cariocas nem se lembravam mais disso", observa.

O longa de 75 minutos não mostra, no entanto, nenhuma gota de sangue. Dividido em quatro partes, o filme volta-se para o dia-a-dia das pessoas e aponta "como em determinados lugares a morte se torna uma forma de resolver conflitos", diz o diretor.

Cobrança burra

Berlinale 2006 Sexo e Claustro | Sex and Cloister
Cena de 'Sexo e Claustro', de Cláudia Priscilla AndradeFoto: presse

Apesar de estar levando a Berlim um filme que definitivamente não ignora os desastres sociais brasileiros, Kiko Goifman concorda que talvez haja "uma cobrança monotemática de que devamos tratar sempre de questões sociais. Mas seria muito burro cobrar isso da cinematografia de um país", conclui.

A crise e os abismos sociais, comenta Fernanda Montenegro (também em Berlim para divulgar Casa de Areia), "contaminam qualquer temática, seja no cinema, nas artes plásticas ou na literatura. Querendo ou não, muito do que é feito vai bater nessa problemática da denúncia social.Na América Latina, o único país que consegue fazer filmes sobre a classe média é a Argentina. Eles têm uma burguesia e um passado político violento, que contamina a cinematografia local."

Diversidade saudável

Ao lado de Sandra Werneck (Meninas), Anna Azevedo (BerlinBall), Kiko Goifman (Atos dos Homens), Cláudia Priscilla (em Berlim com o curta Sexo e Claustro, na mostra Panorama, que retrata uma ex-freira lésbica e discute, segundo a diretora "a questão do desejo em uma situação limite") e das duas Fernandas (Torres e Montenegro), Andrucha Waddington concluiu: "Os filmes dos diretores aqui presentes são completamente diferentes e complementares. A possibilidade de ter obras ecléticas é muito saudável. Esse é o grande mérito do cinema da retomada, que tem de Julio Bressane a Xuxa. Tentar direcionar cinematografias é perigoso", alerta.