1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Estatuto da Família afugenta gays da adoção

Marina Estarque, de São Paulo27 de abril de 2015

Casais homoafetivos estariam com receio de que a família adotiva perca proteção do Estado. Segundo especialistas, projeto de lei 6583/13 pode tirar de certas crianças a única chance de ter uma família.

https://p.dw.com/p/1FFNa
Familie Gladstone Canuto
Foto: privat

A família de Marcos Gladstone (foto) é formada por quatro homens e um bulldog francês. Agora o casal gay, os dois filhos adotivos e o cachorro esperam a chegada de mais uma integrante: uma menina.

A decisão de adotar mais uma criança, entretanto, está ameaçada pelo projeto de lei 6583/13, mais conhecido como Estatuto da Família, que tramita na Câmara dos Deputados.

Polêmico, o projeto define como família apenas casais formados por um homem e uma mulher, ou um dos pais e seus descendentes. Na prática, impede casais homossexuais de se casarem e adotarem crianças – ambos direitos já reconhecidos pela Justiça, mas não previstos em lei.

O projeto também afetaria a famílias compostas por casais heterossexuais com filhos adotivos, ou por tios e sobrinhos, ou mesmo irmãos – em nenhum desses casos há relação de descendência.

"Estamos muito preocupados e, por isso, estamos até correndo com o processo de adoção", diz Marcos, de 39 anos. Caso o projeto seja aprovado, a lei não poderá ser aplicada retroativamente a famílias já constituídas, mas poderá impedir a adoção da futura filha pelo casal.

"Ela não teria os mesmos direitos que os meninos. Teria que ser adotada por apenas um de nós, como se fôssemos solteiros. Caso eu a adotasse, ela não poderia entrar como dependente no plano de saúde da empresa onde o meu marido trabalha, como ocorreu com os meninos. Não teria direito à herança dele, nada. Seria o caos", explica Marcos, que é advogado e pastor.

Para Maria Berenice Dias, presidente da comissão de diversidade sexual da Ordem dos Advogados Brasil, o projeto de lei é um retrocesso. "Tem perfil homofóbico, é uma maneira de tirar os direitos que as uniões homoafetivas vêm conquistando no âmbito do poder judiciário", afirma ela, que também é vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam).

Segundo a advogada, o projeto de lei é inconstitucional, por fazer distinção entre filhos adotivos e biológicos, além de ir contra a decisão de 2011 do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar.

Inadotáveis

Themen der Grünen Homosexualität
Diferente da maioria, casais homossexuais adotam crianças mais velhas e grupos de irmãosFoto: picture-alliance/dpa

De acordo com a advogada Silvana do Monte Moreira, que é diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), o projeto de lei tem afastado homossexuais interessados em adotar crianças.

"O número de atendimentos realizados para casais homoafetivos diminuiu. As pessoas estão muito tensas com isso. Já é tão difícil adotar, a partir do momento em que você pode perder a proteção do Estado para a sua família adotiva, muita gente desiste", afirma.

A advogada afirma que a procura por parte de casais homoafetivos vinha aumentando na última década. Segundo a sua experiência, os homossexuais impõem menos restrições na hora de adotar que os heterossexuais, o que permite com que o processo seja mais rápido.

"Eles adotam justamente os perfis que a maioria não quer, como crianças mais velhas e grupos de irmãos. Na minha opinião, eles passaram tanto tempo sendo marginalizados que buscam exatamente adotar as crianças que são colocadas para debaixo do tapete", diz Moreira.

Para ela, o projeto de lei está tirando de certas crianças a sua única chance de ter uma família. "Nós temos um monte de adolescentes inadotáveis, que estão em acolhimento institucional no Brasil, e as pessoas que poderiam adotá-los estão com medo. Esse projeto de lei é um desserviço", afirma.

Os deputados que apóiam o Estatuto da Família, muitos deles religiosos, acreditam que o projeto de lei beneficia as crianças ao impedir a adoção por homossexuais.

"Não podemos subordinar as crianças a obterem adoção que cristalize a impossibilidade de suprirem o trauma da perda e falta de convívio com seu pai e sua mãe", afirma o relator do projeto, o deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF), em texto anexado à proposta.

O projeto de lei determina que pessoas solteiras, entretanto, podem adotar, porque não estaria excluída a possibilidade de um casamento e "teria paralelo com a família monoparental".

Para o psicólogo Luis Saraiva, presidente da comissão de ética do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, o projeto de lei erra ao enfatizar a procriação como principal função social da família.

"A gente sabe que não é necessariamente com esse fim que as pessoas formam famílias. São relações baseadas em laços de consanguinidade, afeto e solidariedade", diz.

Sem preconceitos

Por não colocarem restrições ao perfil da criança, a adoção realizada por Marcos e seu marido, Fábio Canuto, de 35 anos, foi extremamente rápida para os padrões brasileiros: demorou apenas seis meses.

"Nós éramos o único casal habilitado no estado do Rio de Janeiro, na época, a receber uma criança de seis anos, por exemplo. Também não determinamos cor ou gênero e concordamos com doenças tratáveis", conta Marcos.

No início, o casal queria apenas uma criança, mas acabaram aceitando adotar duas. Felipe e Davidson chegaram à família em 2011, com sete e oito anos de idade, respectivamente.

Segundo Marcos, nos casos em que o adotado é mais velho, o tema da orientação sexual dos pais é tratado antes, durante um período de aproximação, quando a criança passa fins de semana com a família.

"Com o Felipe, nós explicamos que ele não teria uma mãe, mas dois pais. Perguntamos se ele tinha preconceito e preferia esperar por outra família, mas ele escolheu ser adotado. Ele disse: 'eu amo vocês do jeito que vocês são'", conta Marcos, orgulhoso.

Família padrão?

Familie Buffon de Oliveira
Airton (esq.) e Marco Antonio adotaram os irmãos Henrique e GuilhermeFoto: privat

A história de Airton Gonçalves de Oliveira, de 53 anos, e Marco Antonio Scopel Buffon, de 52 anos, é parecida. O processo de adoção dos dois filhos demorou apenas 10 meses.

"As pessoas querem filhos com cor de pele, cabelo e olho igual. Aí ficam cinco anos esperando, claro, até fabricarem exatamente aquilo que eles querem. A gente já não é um casal padrão, por que a gente vai querer uma criança padrão? Nós somos uma família dégradé, cada um de uma cor", conta o casal, entre risos.

Marco e Airton adotaram os irmãos – por parte de mãe – Guilherme e Henrique, há cinco anos, em Porto Alegre. Na época, o mais velho tinha nove anos e o mais novo, quatro.

Sobre o Estatuto da Família, Marco Antonio e Airton acreditam que eles provam, na prática, que o projeto de lei está errado. "Se eles virem a gente, podem pensar: 'Espera aí... Acho que esses guris estão bem'", explicam, bem-humorados, "acabamos virando um exemplo na rua e na escola."