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Migração da forma

Simone de Mello13 de setembro de 2007

'documenta' 12 enfoca trânsito das imagens sobre diferentes suportes, confrontando antigo e moderno.

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Ex-Argentina, de Sonia Abián RoseFoto: Sonia Abian

O acervo da Gemäldegalerie Alte Meister, na Wilhelmshöhe de Kassel, inclui um tampo de mesa pintado em 1533 pelo pintor e gravador renascentista alemão Martin Schaffner. Essa pintura, com um complexo programa iconográfico e conjunções numéricas em torno da cifra 7, abarca em um único tableau as representações dos planetas, dias da semana, metais, cores, artes e virtudes.

Acompanhando os quatro lados do tampo, a imagem distribui – em torno do céu azul e dos sete planetas – as alegorias das virtudes em paisagens renascentistas, cercadas por objetos simbólicos e escritos elucidativos. Através de referências astronômicas e astrológicas em um contexto humanista cristão, o pintor apresenta as relações entre o microcosmo humano e o macrocosmo de uma ordem divina.

Essa imagem, a ser decifrada somente através de uma investigação mais detida, parece abrir portas ao observador quando contrastada com as obras de arte modernas e contemporâneas que a documenta 12 inseriu na coleção dos mestres antigos.

Migração da forma, imagens em trânsito

Durante o século 16, as mesas decoradas com pinturas entraram em voga na Alemanha como peças independentes de mobiliário. Geralmente não eram usadas para refeições, mas sim como mesas de trabalho, leitura ou de reunião para pequenos grupos.

Ao caminhar pela coleção medieval e renascentista da galeria de pintura na Wilhelmshöhe de Kassel, o visitante da documenta recebe a indicação imediata de que a "migração da forma" – um lema desta edição do evento – também se refere ao trânsito concreto das imagens de um suporte para o outro.

Wittenberger Altar-Tryptichon
Tríptico de Lucas Cranach, em WittenbergFoto: PA7dpa

Os retábulos, dípticos e trípticos, superfícies pintadas como suporte para livros litúrgicos mostram que a Idade Média já se confrontava com a questão fundo / forma, represertação / suporte, chegando a soluções que não deixam de dialogar com o tráfego das imagens digitais hoje.

Fundo revertido em forma

Muitas das obras da década de 60 expostas na galeria de pintura de Kassel redescobrem o suporte como parte integrante da imagem. Este é, por exemplo, o procedimento de Mira Schendel em seus Notebooks, nos quais as formas gráficas pretas e a superfície branca invertem permanentemente a relação fundo / forma. As composições com fotos rasgadas da belga Lili Dujourie mostram como a destruição do suporte e a conseqüente fragmentação da imagem podem servir como procedimentos geradores de novas formas.

Ao anotar a lápis uma série de algarismos sobre a superfície irregular de recortes de jornal e retalhos de pano, o artista japonês Tanaka Atsuro já refletia na década de 50 a relação de descontinuidade entre forma e suporte. As diversas peças abstratas da alemã Charlotte Posenenske espalhadas pela documenta – formas geométricas em diferentes materiais – marca presença dos movimentos modernos que reduziram a forma ao material e à cor.

Microcosmo sem macrocosmo

Diante dessas reflexões abstratas e sutis sobre o trânsito das imagens ou a migração das formas, o trabalho que a artista argentina Sonia Abián Rose fez para a documenta 12, em referência à mesa pintada do renascentista Martin Schaffner, parece uma leitura excessivamente figurativa e literal.

Em Campo de Concentração do Amor, ela cobre de imagens o exterior e os interiores da réplica de uma cômoda de cedro antiga, misturando desenhos de cenas no campo de concentração de Auschwitz, em preto e branco, com imagens eróticas coloridas extraídas das cenas de caça de pinturas de Rubens, Brueghel e Poussin.

Enquanto a rede de relações da pintura renascentista se faz a partir do repertório de referências comuns a uma época, as associações criadas por Rose são estritamente individuais, limitando-se ao horizonte da artista. Talvez esta seja uma impressão que se aplique a toda a documenta 12, com sua confrontação programática de antigo, moderno e contemporâneo. O microcosmo das obras contemporâneas, por mais que assimile as imagens em trânsito e formas em migração, raramente ecoa um macrocosmo reconhecível.