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Friedrich Kittler

19 de outubro de 2011

Friedrich Kittler antecipou discussões que permeiam hoje o universo acadêmico, esbarrando em resistências em sua trajetória, para depois garantir seu lugar como um dos mais importantes pensadores alemães da atualidade.

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Reflexões à frente de seu tempo: Friedrich KittlerFoto: picture-alliance/dpa

A morte aos 68 anos, na terça-feira (18/10), em Berlim, de Friedrich Kittler, teórico de literatura e "historiador da mídia", como ele próprio gostava de se definir, foi lamentada em todo o país.

Celebrado como "gênio" pelo semanário Die Zeit e chamado de "Hegel às avessas" pelo jornal Süddeutsche Zeitung, Kittler é lembrado sobretudo como um pensador inconformista, não afeito ao politicamente correto nem ao mainstream acadêmico bem comportado. "Se a universidade alemã de hoje ainda está em condições de produzir heróis e ainda heróis da resistência intelectual, Friedrich Kittler foi um deles", elogia o Süddeutsche Zeitung, de Munique.

Como descreve o Die Zeit, Kittler era "o protótipo do professor temido e perseguido pela ciência especializada, mas tanto mais adorado pelo grande público. Ele ultrapassou agilmente as fronteiras de sua área de pesquisa, disseminando, desta forma, seu saber estupendo, que abarcava desde a Antiguidade, a Música, a Matemática e a Literatura, até objetos concretos como a guitarra elétrica, os arranhões dos vinis, projetores e o papel".

Avesso ao conformismo

Provocador, ele conseguiu "expulsar o tédio das Ciências Humanas" na Alemanha, sendo considerado, depois das dificuldades enfrentadas para se firmar em meio ao conservadorismo do meio acadêmico, como um "espírito realmente livre, que nunca partilhou do conformismo da 'consciência crítica'", estampou o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Autor de textos "extremamente bem escritos e ao mesmo tempo de difícil compreensão", como descreve Norbert Bolz, professor de Ciência da Mídia na Universidade Técnica de Berlim, no diário berlinense Tagesspiegel, Kittler deixa não apenas um séquito de ex-alunos e discípulos, mas também o impulso imprescindível que levou a discussões acerca do papel da mídia na sociedade contemporânea.

Dispositivos midiáticos como objeto de estudo

A máxima de que todo pensamento vem à tona através das mídias foi um dos pontos de partida de suas teorias. Já em meados dos anos 1980, Kittler, na contracorrente de seus colegas do mundo acadêmico alemão naquele momento, fez dos dispositivos midiáticos, como o livro ou um chip de computador, objeto de suas teorias.

Buchcover Musik und Mathematik I Hellas 1 Aphrodite von Friedrich Kittler
Capa de 'Música e Matemática', de Friedrich Kittler

Para Kittler, o pensamento humano se forma em sistemas de signos e de anotações. Ele defendia a ideia de que os sistemas usados em determinada época para anotar – ou seja, as técnicas e sistemas dos quais uma cultura dispõe para arquivar, disseminar e organizar informações – acabam determinando, de fato, o que o homem desta época pensa e como ele vê a si mesmo. Sendo assim, fica claro que os padrões e as ferramentas técnicas/tecnológicas acabam por determinar o pensamento de um tempo.

Sua obra Grammophon. Film. Typewriter (Gramofone. Filme. Máquina de Escrever) rompeu com a imagem idealizada de que o homem seria o "criador das mídias", para apontar que ele não pode ter criado as máquinas de informação como tais, mas, muito pelo contrário, está sujeito às mesmas.

Mídia: filha da guerra

Grammophon. Film. Typewriter, escrito a partir de sua tese de livre docência (Aufschreibesysteme 1800/1900/ Sistemas de Anotações 1800/1900), teve, segundo consta, que passar pelas mãos de 13 avaliadores – ao contrário do procedimento normal de uma banca com três professores – para ser aceita pela Universidade de Freiburg no ano de 1984. Uma prova de que a resistência a seu viés teórico era imensa.

Kittler viria a refletir posteriormente, no decorrer dos anos, sobre associações entre a guerra, a mídia e o saber tecnológico, fundando o que passou até mesmo a ser chamado de "Escola de Kittler" ou "Escolha Berlinense", no contexto da Teoria da Mídia. Uma vertente teórica partilhada também pelo francês Paul Virilio, com quem Kittler mantinha afinidades tanto de conteúdo quanto no intuito de provocação de suas premissas.

Tastatur
'O computador vai deglutir as outras mídias', previu Kittler há décadasFoto: bilderbox

Kittler descreveu, por exemplo, como as guerras impulsionaram de maneira decisiva o desenvolvimento das mídias, a começar, por exemplo, com a invenção do telégrafo durante as Guerras Napoleônicas. E situou, com uma perspicácia à frente de seu tempo, o homem contemporâneo sobretudo como "um servo das mídias".

Hegemonia do computador

O poder do computador sobre o homem já estava claro para Kittler muito antes de teorias do gênero terem se tornado lugar comum no universo acadêmico.

Em 1986, ele já apontava a hegemonia do computador sobre todas as outras mídias, que, segundo ele, tenderiam a desaparecer. Para Kittler, contudo, isso trazia um desconforto: o fato de o computador transformar tudo em códigos binários de zeros e uns, ou seja, na fórmula do "sim ou não" – a mesma de um comando superior autoritário, que não dá espaço à flexibilidade.

Correspondência com Foucault e Derrida

Ainda em vida, Kittler doou todo seu acervo ao Arquivo Literário de Marbach, que cuida hoje de manuscritos não publicados do autor, trabalhos preliminares que levaram a obras já publicadas, além de sua correspondência com Michel Foucault e Jacques Derrida.

Michel Foucault
O filósofo francês Michel FoucaultFoto: picture-alliance/ dpa

Algumas obras selecionadas compõem a exposição permanente do museu do Arquivo, aberta ao público durante todo o ano. Entre elas está um sintetizador primitivo que Kittler construiu nos anos 1970, "supostamente menos por entusiasmo pela música eletrônica do que como ato de participação no último capítulo da humanidade", observa o jornal Süddeutsche Zeitung.

A mostra e o acervo são certamente uma forma eficaz de manter vivo o pensamento do ex-professor de Estética e História da Mídia da Universidade Humboldt de Berlim, onde Kittler deixa seguidores, chamados nos idos dos anos 1990 até mesmo de "juventude kittleriana", por alinharem qualquer discussão teórica contemporânea ao debate midiático.

Simpatize-se ou não com suas teorias, como assinala o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung em artigo publicado por ocasião de sua morte, "quem conheceu Friedrich Kittler e teve a honra de tê-lo por perto sabe o quanto seu pensamento era sólido. E o quanto ainda é e ainda será".

Autora: Soraia Vilela
Revisão: Roselaine Wandscheer