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"O Brasil está isolado do mundo desde a ditadura"

Simone de Mello12 de maio de 2005

Uma mostra de arte indígena marca o Ano Brasil na França. Será que os brasileiros se fecharam em sua própria reserva? O jornalista e artista francês Gilles de Staal analisa a mostra e a relação do Brasil com o exterior.

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'Objetos esplêndidos, mas nenhuma descoberta para os brasileiros'Foto: Cid Collection, São Paulo.

DW-WORLDA exposição "Brésil Indien" marcou o início do Ano Brasil na França. Que aspectos da cultura indígena brasileira estão expostos no Grand Palais?

Gilles de Staal, französicher Publizist und Künstler
Gilles de Staal, artista e jornalista francêsFoto: DW

Gilles de Staal – A exposição se divide em duas partes principais. A parte arqueológica tem sobretudo objetos de barro, urnas funerárias das civilizações do Marajó, do Baixo Amazonas, do Rio Negro, entre outras regiões, chegando à época da Conquista. A parte contemporânea inclui os mais variados objetos de produção atual, objetos trançados e cocares esplêndidos – coisas que também se encontram nas sedes da Funai. Objetos esplêndidos, mas nenhuma grande descoberta para os brasileiros.

E para os europeus?

Para os europeus, sim. Principalmente os filmes antropológicos projetados no centro das salas, mostrando cenas cotidianas, pessoas pintando o corpo, festas, cerimônias... Com estes filmes, as peças da exposição ganham sentido. Eles deixam claro que as nações indígenas vivem no Neolítico, mesmo que os índios não pareçam o Homem de Neanderthal ou de Cromagnon. Para o europeu, isso talvez lembre a civilização micênica, a Grécia arcaica, as eras das grandes descobertas...

Pelo que você está dizendo, a exposição veicula uma imagem purista ou prototípica da cultura indígena. Ela também dá alguma pista sobre o processo de aculturação do índio brasileiro?

Não. Este é um dos problemas, pois a exposição é completamente idealizada. É uma mostra feita para o grande público, um público que não tem a menor idéia da realidade indígena no Brasil, dos problemas de demarcação de territórios e de muito mais coisas que não podem ser expostas num mostruário. Os filmes revelam que estas sociedades podem viver muito bem como estão, no estado natural.

Statuette aus Brasilien
Estatueta antropomórfica de Santarém (900–1600 da nossa era). Peça exposta na mostra 'Brésil Indien', no Grand Palais de ParisFoto: Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.

A exposição não tem nenhum contexto político ou histórico. É claro que seria completamente diferente mostrar uma exposição dessas na França ou no Brasil. No Brasil, esta falta de contextualização consagraria o extermínio indígena. Afinal, antes do índio idealizado, existe o índio real. E o índio real existe e está prometido ao extermínio. Ele é o único alvo do ódio racista do tipo europeu. No Brasil, o racismo não tem a mesma conotação que na Europa. O único paralelo que conheço disso no Brasil é em relação ao índio. Depois se coletam as relíquias e se inventa um índio idealizado, condizente com a idéia do Pindorama...

Na Europa, a exposição permite descobrir que o homem selvagem não é um solitário fugitivo no meio da floresta, mas membro de uma sociedade que existe e pode viver feliz, se tiver condições básicas. Este é um recado extremamente importante.

"A percepção brasileira da Europa é estereotipada"

Esta imagem idealizada também exclui os índios aculturados que não têm nem sequer uma causa coletiva a defender, por terem perdido completamente o vínculo com suas origens. Agora começa a ocorrer um fenômeno interessante de redescoberta da identidade indígena a posteriori...

Sim, toda pessoa que sofre discriminação por aquilo que é interioriza a renegação da identidade. A perda de uma identidade confirmada pela sociedade como inexistente e morta é uma ferida incurável. É para sair desta dor interiorizada que se resgata esta identidade posteriormente.

Você não acha que este aspecto "etnológico" e pitoresco também se aplica à recepção européia da cultura brasileira de maneira geral?

A sociedade brasileira não é conhecida aqui, seus problemas são extremamente simplificados, sua imagem é estereotipada. Mas esta não é uma visão antropológica. O que eu acho é que esta recepção reflete a percepção que o Brasil tem do mundo exterior. A percepção brasileira da Europa é completamente estereotipada.

Então você acha que isso é recíproco?

Sim. Isso também é um reflexo do extremo isolamento em que o Brasil se encontra há décadas em termos de intercâmbio de conhecimento. Mesmo que os brasileiros não achem, o Brasil está isolado do mundo desde a ditadura. O governo FHC, durante o qual o país se achava o centro do mundo, foi um momento de absoluto isolamento. Na época, um jornal como o Le Monde, por exemplo, dava um artigo de três laudas a cada dois meses sobre um assunto geralmente pitoresco do Brasil. Havia mais notícias sobre a Austrália, o Sri Lanka, Madagascar... Depois da eleição do Lula, eu esperava que isso fosse mudar, mas constatei que o desinteresse continua...

De onde você acha que vem este isolamento?

É uma coisa extremamente profunda, ligada à própria estrutura cultural e social do Brasil. O Brasil é um país cujas elites não se responsabilizaram por sua própria sociedade, chegando a ponto de confiar a questão nacional ao Exército. As elites brasileiras têm uma visão profundamente corporativista da sociedade e dos poderes: a liberdade de imprensa pertence aos jornalistas; o patriotismo pertence às Forças Armadas; o direito pertence à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): enfim, é um mundo que pensa através das corporações. E as elites não se pensam como nacionais. O destino da nação está sob o olhar da opinião pública internacional. Aliás, acho que o Brasil é o único país do mundo em que existe esta noção de opinião pública internacional, pois todo mundo sabe que isso é uma ficção.

Por que o único?

Vou dar um exemplo ligado à questão indígena. Quando se tem um problema desta ordem, envolvendo demarcação de terras, ou seja, conflitos de interesses entre as classes sociais, a resolução do conflito está normalmente ligada às relações de força dentro da sociedade. Neste caso, os índios não teriam a menor chance. Mas quando uns 25 mil ianomâmis, por exemplo, encontram o apoio do Sting ou do príncipe Charles, aí as elites de Roraima se sentem em perigo. Porque são elites que existem através do olhar daqueles que representam – no seu imaginário – a sua própria origem.

"A elite se coloca apenas como classe desfrutadora"

Mas no Brasil sempre há uma exceção (ou mais) à regra. Só para ficar no exemplo indígena, houve o famoso caso do incêndio na Amazônia, no qual o governo FHC se recusou a receber ajuda internacional, alegando soberania nacional. E o incêndio acabou sendo apagado após uma pajelança... Este seria um exemplo de que o Brasil na verdade não se importa com a opinião pública internacional.

Federschmuck aus Brasilien
'Objetos esplêndidos, mas nenhuma descoberta para os brasileiros'Foto: Cid Collection, São Paulo.

Muito pelo contrário, isso confirma o que estou dizendo. Este corporativismo das elites, que é uma espécie de neurose, pode se reverter de uma maneira instantânea. A opinião pública internacional pode ser recusada em nome da soberania nacional. Uma coisa ligada a esta neurose é o fato de esta elite não se colocar como classe dirigente, mas apenas como classe desfrutadora. Ela confia a responsabilidade histórica dela a diferentes corporações, sob o olhar da opinião pública internacional, que lhe dá a gratificação.

Se a propagação da cultura brasileira é inviabilizada por este isolamento que você descreve, então eleger o Brasil como país de destaque da saisons culturelles da França, por exemplo, dificilmente vai contribuir para resolver o problema, não é mesmo?

Não acredito que isso seja irreversível. As elites continuam com a mentalidade da República dos fazendeiros, mas não são todas as classes brasileiras. Há uma transformação da sociedade brasileira, desde o fim da ditadura, no sentido de que as pessoas estão passando a se sentir responsáveis pelo destino da nação.

Voltando à questão indígena, na virada dos anos 90, os índios conquistaram vitórias inesperadas, sabendo muito bem como pressionar as elites. Eles entendem muito bem os mecanismos da sociedade brasileira. Agora o Lula conseguiu demarcar a Raposa Serra do Sol. Isso não é simbólico, é verdadeiro. Isso cria uma dinâmica que está apenas no começo e modifica a noção que a sociedade tem dela mesma.

Gilles de Staal é artista plástico e jornalista. Escreve sobre o Brasil para a mídia francesa. Vive em Paris.