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O mais jovem dos "joyceanos"

Soraia Vilela17 de junho de 2004

Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão vai este ano para o húngaro Péter Esterházy, 53, cuja obra é tida como "uma subversão suave contra todo tipo de ordem".

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O húngaro Esterházy: mestre do não ditoFoto: AP

Descendente de uma das mais antigas e mais aristocráticas famílias da Europa, este "europeu por excelência", quando aparece em público, nunca passa despercebido. "Seja por sua altura, por sua postura ereta, pela cabeleira hoje quase completamente branca. Ou pela seriedade quase amarga", descreve o diário alemão Frankfurter Rundschau.

O mesmo pode-se dizer de sua obra. Esta também não passa despercebida. Seja pelo tamanho (as mais de 800 páginas do clássico Harmonia Caelestis), pela forma (o tricô de elementos dos mais diversos gêneros literários), ou pela insistência no jogo dialético entre o mito e o real.

Da Matemática às Letras

Nascido em 1950 em Budapeste, Esterházy vivenciou a expropriação do patrimônio de sua família pelo regime comunista, freqüentou uma escola excepcionalmente católica em uma Hungria que não fazia concessões à religião e acabou formando-se em Matemática na universidade local. Entre 1974 e 1978, trabalhou como organizador de sistemas no Instituto de Processamento de Dados do Ministério da Indústria Mecânica e Mineradora.

Talvez tenha sido a função quase kafkiana de um departamento público monstruoso que tenha levado Esterházy a abandonar tudo para se tornar estritamente escritor a partir de 1978. Convidado pela Alemanha, viveu em 1980 – muito antes do fim da Cortina de Ferro – nove meses em Berlim Ocidental. Desde 1984, passou a receber regulamente uma série de prêmios por sua produção literária. Por pouco, no entanto, não teria se tornado jogador de futebol, como o irmão Marton, membro da seleção húngara nos anos 80.

Obra de difícil digestão

"Do ponto de vista estético, Esterházy é um jogador, que ao mesmo tempo ama e odeia o eu", observa o Frankfurter Rundschau. E sua obra, definitivamente, "não é de fácil digestão", completa o diário suíço Neue Zürcher Zeitung.

E é sob a égide de um eu-narrador que Esterházy, em Harmonia Caelestiae, disseca com um misto de lamento e ironia a saga de sua nobre família em uma Hungria comunista. Um volume de mais de 800 páginas, que quando lançado em 2000 na Alemanha foi considerado pelo jornal Süddeutsche Zeitung "o maior romance com o qual a Europa se despede do século 20".

Pensar que esse álbum de família minuciosamente reconstruído pudesse ser empurrado para a gaveta dos romances açucarados de época é ledo engano. Harmonia Caelestis é, antes de tudo, uma paródia da ascensão e queda dos Esterházys, um espelho da história húngara, um mosaico joyceano de citações onde passado e presente se intercalam e, principalmente, onde ironia e lamento caminham lado a lado. "O fruto de uma traição do moderno tardio com o barroco", sentencia o Süddeutsche Zeitung.

Semelhanças com o realismo fantástico latino-americano

Dividida em dois volumes, a grande obra de Esterházy vai e volta na história em sua primeira parte, para se ater então a uma ordem cronológica na segunda. Tudo "consideravelmente complexo", como analisou na época de seu lançamento na Alemanha o semanário Die Zeit.

A gama de personagens, anedotas e alusões faz lembrar, segundo o jornal, o realismo fantástico latino-americano dos anos 60 e 70, com sua confusão babilônica de vozes. Faltando, no entanto, o desejo de construção de um García Marquez ou a aptidão artesanal de um Vargas Llosa.

Mestre do não dito

Ao invés disso, Esterházy opta no primeiro volume de seu compêndio de mais de 800 páginas pela elipse e pelo ceticismo do não dito. O que de certa forma já fazia em seu primeiro romance, Francsiko e Pinta (nomes de seus pais), publicado quando o autor tinha apenas 26 anos. Uma obra em que o mundo quase fabuloso de sua infância é aqui e ali assombrado pela realidade. Um cenário em que a figura do pai – que vai permear toda a sua obra a partir daí – já toma seu lugar.

Roland Barthes dizia que "o prazer do texto está na intermitência da pele que cintila entre duas peças, entre duas margens". No caso de Esterházy, esse vão do texto está escondido sob o manto da ironia, que, ao fim, esvoaça de leve para deixar escoar boas doses de amargura. Uma obra em que a fronteira entre a seriedade e o lúdico é continuamente fluida.

Talvez por isso o Comércio Livreiro Alemão tenha justificado o prêmio concedido ao escritor por "sua coragem de falar abertamente e descrever de forma clara e poética a tragédia, colocando-se como contraponto à depressão européia".

Acerto de contas com o pai

Capaz de alfinetar tanto a aristocracia de onde vem quanto as mazelas surgidas sob a égide do comunismo, Esterházy não parece ter medo do risco. Quando estava por terminar Harmonia Caelestis (o título provém de um volume de canções religiosas editado por ancestrais do escritor em Viena, em 1711), Esterházy descobriu que o pai, que tanto admirava, tinha colaborado durante 23 anos com a polícia política húngara. Decidiu, então, enveredar-se mais uma vez pelos porões dessa família aristocrática, publicando a espécie de posfácio a Harmonia Caelestis que é Edição Melhorada – um acerto de contas desiludido e doloroso com o próprio pai.

Um cronista não só da complicada história de sua própria família, mas da história húngara, do Leste Europeu, da Europa como um todo, Péter Esterházy, segundo o Comércio Livreiro Alemão, é um autor que foi capaz de "tomar o peso do passado". E, principalmente, um escritor "cuja arte não está no que escreve, mas no como escreve", segundo analisa o Neue Zürcher Zeitung. Em suma, "o mais jovem dos joyceanos" em ação.