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"O olhar do estrangeiro pode ser útil"

Soraia Vilela1 de abril de 2003

Omar Akbar, diretor da Fundação Bauhaus Dessau, discorre sobre o projeto "Célula Urbana" e fala sobre a exposição na embaixada brasileira em Berlim, que tem a urbanização da favela como tema.

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A preocupação social sempre foi uma das premissas da BauhausFoto: AP

DW-WORLD – Durante sua estada no Rio de Janeiro, o senhor afirmou que o Brasil seria "um ótimo exemplo escolar de arquitetura". O que o senhor quis dizer exatamente com isso ?

Akbar – Andando pelas ruas do Brasil, vê-se o art déco dos anos 40, o moderno, Niemeyer imediatamente ao lado e também o pós-moderno. Além disso, há, com as favelas, um entrelaçamento extremo. Trata-se de áreas que se complementam, mas ao mesmo se contradizem. Nas favelas, pode ser observada uma organização arquitetônica interessantíssima. Todas essas diferenças e contradições, a postura de algumas pessoas frente à arquitetura e a imagem que as favelas têm na cidade são alguns dos temas que me fascinaram. Foi quando pensei: é possível aprender muito aí.

Um dos arquitetos da equipe da Fundação Bauhaus Dessau que veio ao Brasil em 2000, afirmou em entrevista que a favela teria várias características a serem preservadas e não deveria ser simplesmente carimbada como um gueto da miséria. Quais são, a seu ver, essas qualidades?

Em uma favela, tem-se em princípio a impressão de que existe uma estrutura mista: prestação de serviços, trabalhadores autônomos e as residências. Pelo menos vista através de uma perspectiva européia, pode-se dizer que essa estrutura mista é a grande qualidade urbana. A organização arquitetônica e do espaço, apesar de ser muito densa, é composta de prédios em torno de dois andares, o que provoca uma boa ventilação, respeitando as condições climáticas.

Não só a organização urbana e arquitetônica deve ser preservada, mas também a forma como essas favelas são aproveitadas: há uma vitalidade enorme ali. Trata-se de uma forma de convívio distinta, que obviamente pode vir a se tornar um problema, mas a princípio parece muito urbana. Isso é o que queremos: preservar essa qualidade urbana, libertando a região, no entanto, de um certo peso excessivo. Há necessidade de preservar essas qualidades arquitetônicas especiais, melhorando a qualidade de vida da população, com saneamento básico, energia, etc.

No projeto Célula Urbana, falou-se em diversas etapas no processo de "reurbanização" da favela do Jacarezinho...

Nós dividimos o projeto em três áreas: a primeira chamamos de "bloco" e está localizada em uma região onde as pessoas já moram. Uma segunda, além da linha de trem que passa na região, chamamos de "foyer", que seria uma extensão do que é hoje a área da favela. sobre a ponte deverá ser construída uma ponte. Para cada área, desenvolvemos um projeto especial. Começamos com o "bloco", na região já habitada, onde examinamos cuidadosamente as construções, o que nos levou à conclusão de que muitas casas encontram-se em bom estado.

O que não significa que não é necessário ventilar e iluminar melhor. Em vez de derrubar uma casa, por exemplo, pensamos se não bastaria abrir uma janela. Procuramos encontrar soluções individuais para cada construção. Uma segunda estratégia foi criar espaços, como abrir diversos pátios internos na região, alguns públicos e outros não. Isso foi necessário para tornar o espaço menos denso, para que as outras construções funcionem melhor. E nossa terceira estratégia foi preencher onde havia um vazio desnecessário. Nós tiramos a densidade e preenchemos de novo onde foi preciso.

Como foi possível desenvolver um trabalho conjunto entre arquitetos brasileiros in loco e a equipe da Fundação Bauhaus Dessau na Alemanha?

De início, colocamos a questão: quem somos nós? Nós somos os estranhos. Não temos nada a ver com determinadas coisas. O olhar do estranho pode ser, algumas vezes, muito útil, porque ele não é tão viciado. Então tivemos dois parceiros na administração da cidade, Maria Lúcia Petersen e Dietmar Starke, que são muito ativos na favela do Jacarezinho. Desenvolvemos o projeto em Dessau e enviamos para o Rio, onde ele sofreu algumas correções, até que ficasse como exigiu a prefeitura da cidade.

Quando terminamos a fase do conceito geral do projeto, começamos a trabalhar com um escritório de arquitetura local, que desenvolveu os planos concretos do que deveria ser feito. A equipe da Fundação Bauhaus visitou a favela do Jacarezinho várias vezes durante este período. Por outro lado, alguns profissionais brasileiros vieram até nós. No dia 2 de abril é inaugurada na embaixada brasileira em Berlim uma exposição sobre o projeto.

O que será apresentado ao público alemão nesta exposição?

Apresentamos o projeto, com fotos, vídeos e documentos sobre a situação quando começamos e hoje. Paralelamente temos um colóquio sobre o tema, para poder colocar a favela mais uma vez como tema. Na minha opinião, trata-se de um dos principais pontos a serem discutidos no mundo, pois 1,5 bilhão de pessoas vivem em tais formas de habitação. As favelas são até mesmo um dos melhores alojamentos, comparados ao que se encontra em países africanos ou na Índia, por exemplo.

Acho muito importante que instituições de grande porte e importância se ocupem não apenas com o "lado nobre" da arquitetura. Os arquitetos e urbanistas têm uma responsabilidade social. Por isso é importante mostrar ao público este tipo de projetos, discutir sobre eles. Nós nos preocupamos com isso também porque a questão social sempre exerceu um papel importante na história da Bauhaus. Hoje, em nível internacional, acreditamos que as favelas devem ser nosso objeto de estudo, ao lado de outras formas de arquitetura.

A visita dos arquitetos da Fundação Bauhaus no Brasil foi registrada com muito entusiasmo pela mídia. O senhor acredita que espaços como o foyer na favela do Jacarezinho correm o risco de se transformar em alvo turístico, sem levar em conta as melhorias para a população local?

Esperamos que isso não aconteça. Por exemplo, o bairro Kreuzberg, em Berlim, quando foi recuperado, ficou conhecido como um "lugar especial", tornando-se um centro de visitas. Não se trata, no entanto, de um turismo convencional. A região começou a atrair especialistas, que tinham um real interesse em ver aquilo até mesmo para copiar aquele modelo. Se isso acontecer no Jacarezinho, acho positivo, pois assim dá-se início a um discurso sobre a favela. Esses lugares começam a deixar de lado a conotação negativa, tornando-se tema de discussões. É uma questão de organização se os visitantes podem vir a incomodar os habitantes da favela ou não.

Como o projeto Célula Urbana se encaixa nos "temas anuais" da Fundação Bauhaus Dessau?

Nos anos 1999/2000, tivemos como programa do ano o tema Complex City, cidade complexa. Nesse contexto está o Célula Urbana. Os projetos são desenvolvidos nas nossas oficinas, depois discutidos por nosso colegiado, formado por vários especialistas que estiveram no Rio de Janeiro: não só arquitetos, mas também artistas que se ocupam do tema urbanismo. E parte dos resultados dessas discussões flui de volta às nossa oficinas.

A Fundação Bauhaus Dessau recebeu nos últimos tempos críticas na mídia, por ter relegado suas atividades de museu a segundo plano em prol de intervenções diretas em projetos arquitetônicos. Como o senhor reage a tais críticas?

A questão relacionada ao urbanismo é, na minha opinião, a continuação de um discurso iniciado pela Bauhaus a partir dos anos 20. O que concerne ao papel de museu, temos sempre exposições dedicadas à história da Bauhaus, como no momento uma mostra em que expomos quase todo nosso acervo. Tentamos unir o histórico e o atual em um único contexto, algumas vezes intercalando os dois.

A partir de maio, teremos uma dessas grandes exposições anuais, intitulada O Estilo Bauhaus: Entre International Style e Life Style, na qual refletimos sobre a história da Bauhaus. Acredito que as duas linhas – a histórica e a atual – podem caminhar paralelas e devem principalmente se complementar, pois se a Fundação Bauhaus não for sempre em busca de suas raízes, ela não terá legitimidade.