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Opinião: Cínico pôquer de poder na Síria

27 de agosto de 2016

Avanço militar turco redefine os fronts da guerra na Síria. EUA aprovam novo curso de Erdogan, que aproveita para investir contra os curdos, as verdadeiras peças sacrificadas nesse jogo, opina o jornalista Kersten Knipp.

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Kersten Knipp é jornalista da DW
Kersten Knipp é jornalista da DW

Se há um grande mestre do cinismo no mundo árabe, ele é o presidente sírio, Bashar al-Assad. Desde 2011 ele investe contra as reivindicações legítimas de sua própria população com toda brutalidade possível. A partir da decisão calculista de libertar os extremistas religiosos das prisões do país, desencadeou uma guerra que, pelo menos no curto prazo, transcorre a seu favor.

Em solo sírio, fez nascer um monstro contra o qual agora toda a comunidade mundial se alia: o grupo terrorista "Estado Islâmico" (EI). De um lado, Rússia, Irã, Iraque e Hisbolá; do outro, Estados Unidos, Arábia Saudita e Catar. Todos eles se uniram cada vez mais na luta contra o EI, contribuindo, assim, para que o regime Assad permanecesse no poder.

Agora Ancara é o mais recente ex-opositor do presidente sírio a mudar de lado. Um comboio militar turco atravessou a fronteira para a vizinha Síria. Oficialmente, com o fim de combater o EI, responsável por diversos atentados sangrentos na Turquia. Inoficialmente – e talvez até acima de tudo –, o alvo também podem ser os rebeldes curdos, cujas posições na Síria os turcos já vinham bombardeando com aviões de combate.

A jogada de Assad deu certo: como adversário dos monstruosos jihadistas do EI, ele conseguiu se apresentar como paladino na luta contra a barbárie – apesar de todos os seus gritantes crimes de guerra e violações dos direitos humanos. Ao menos a comunidade mundial vê nele um mal menor do que os decapitadores do EI.

Porém já se pode prever que, na melhor das hipóteses, só em parte o cálculo de Assad levará a um final positivo. Ele talvez ainda consiga se manter durante um tempo no poder. Contudo é mais do que incerto o que restará, no fim das contas, do Estado a ele confiado, a herança de seu pai. A Rússia e o Irã não apoiam Assad por pura amabilidade: quando chegar a hora, eles vão dizer qual é o preço de sua política.

No que concerne à Turquia, deve-se estar preparado para tudo, com um presidente que evoca o espírito "que fundou o Império Otomano" – ao qual também a Síria já pertenceu. É uma incógnita, que tipo de projeções mentais essa lembrança histórica desperta em Ancara. Seja como for, desde o avanço turco a Síria tem mais um flanco aberto.

Os menos felizes com essa operação militar serão os curdos, tanto na Síria quanto no Iraque e na Turquia. Ao que parece, os planos deles de maior autonomia sofreram um revés considerável.

Os curdos já haviam tido uma outra decepção nesta quarta-feira (24/08), quando, durante visita a Ancara, o vice-presidente americano, Joe Biden, instou os turcos a recuarem para o leste do rio Eufrates. "Nós apoiamos expressamente o que os militares turcos estão fazendo", declarou Biden após um encontro com o presidente Recep Tayyip Erdogan. Além disso, os EUA ameaçaram cortar a ajuda militar aos curdos.

Esse é um sinal claro de onde Washington deposita suas prioridades de: em Ancara. A aproximação turco-russa, as discretas conversações turco-iranianas em Ancara, o novo tom nos pronunciamentos sobre Assad: tudo isso seguramente despertou apreensões entre os parceiros ocidentais da Turquia. O temor é que Ancara possa passar para o lado russo-xiita. O Ocidente quer impedir isso: essa é a mensagem explícita da declaração de Joe Biden.

As peças sacrificadas nesse jogo são os curdos, até então parceiros dos EUA na luta contra o EI. Eles têm todo o direito de se sentir, se não traídos, no mínimo menosprezados, num momento em que, quase 100 anos depois de ter sido anunciado, o Estado curdo volta a ser descartado na disputa pela ordem europeia do pós-guerra. A região prossegue intranquila.

Kersten Knipp
Kersten Knipp Jornalista especializado em assuntos políticos, com foco em Oriente Médio.