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Os 130 anos de uma família negra na Alemanha

Nadine Wojcik
22 de agosto de 2023

Até hoje, ser preto e alemão é paradoxo para muitos. História dos Diek começa em 1891, com um jovem de Camarões, passando pelo colonialismo e o nazismo. Descendente Abenaa Adomako reivindica reconhecimento.

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Família afro-alemã Diek à mesa
Primeira geração dos Diek: Emilie e Mandenga entre as filhas Doris e ErikaFoto: Privatbesitz Reiprich

O auditório está completamente lotado, quem não conseguiu assento apoia-se nas paredes ou na soleira da porta. O público absorve com atenção a história familiar de Abenaa Adomako, e sua mensagem clara.

Desde o colonialismo do século 19, os alemães negros lutam por seus direitos:perseguidos pelos nazistas, invisíveis no país pós-guerra, autoconfiantes na Berlim dos dias atuais. Não há como contornar a pergunta que paira no ar: como é possível os descendentes da família Diek, que já vivem há 130 anos na Alemanha, terem que lutar até hoje por reconhecimento?

"Todos temos a mesma desvantagem, sejamos pretos ou brancos: todos nós começamos do zero. Do lado negro, escavamos a história, agora nos conectamos", explica Adomako.

Junto com o irmão Roy e em cooperação estreita com a equipe de curadores do Museu Schöneberg, em Berlim, ela concebeu sua mostra pessoal sobre a família: Auf den Spuren der Familie Diek. Geschichten Schwarzer Menschen in Tempelhof-Schöneberg (Na trilha da família Diek. Histórias de gente negra em Tempelhof-Schöneberg).

1ª geração: Migrantes das colônias africanas

"Quando eu conto que a nossa avó fazia para nós königsberger klopse ou senfeier [almôndegas de Königsberg, ovos com molho de mostarda, ambos pratos ultratradicionais alemães], isso ainda causa espanto", comenta Adomako, calma e serena. Há muito ela já se acostumou a explicar suas raízes sem ter que se justificar: sua família está há cinco gerações na Alemanha.

A história dos Diek começa com o jovem Mandenga, que chega em 1891 de Camarões e se forma como sapateiro. Como na época colonial negros eram considerados "exóticos", seu mestre o instala na vitrine da loja. Depois de se demitir, torna-se comerciante autônomo, casa-se pela segunda vez em Danzig (atual Gdansk, na Polônia) com Emilie, da Prússia Oriental.

Mandenga Diek abre uma "loja de artigos coloniais", que abastece até mesmo a corte imperial. Ele é um cidadão considerado e respeitado na cidade, suas filhas, Erika e Doris, frequentam um liceu particular. Mas aí os nazistas assumem o poder.

Afro-alemã Doris Diek em foto em preto e branco de 1944
Anos dourados em Danzig: Doris Diek e colegasFoto: Privatbesitz Reiprich

2ª geração: afro-alemães no nazismo

De acordo com a doutrina racial nazista em vigor, as meninas estavam barradas de qualquer instituição de ensino superior. Os vizinhos insultam a família, as crianças não podem mais se encontrar com os amiguinhos. O regime retira os passaportes dos Diek: eles seguem vivendo na Alemanha, mas oficialmente são apátridas.

"As filhas sofreram muito com a situação. Minha avó queria virar médica, agora isso tudo caíra por terra", conta Adomako. O pai da família foi desapropriado e perdeu seu próspero negócio. Os Diek conseguiam subsistir, mas Mandenga morreu precocemente de enfarte cardíaco.

A filha mais velha, Erika, consegue emprego como contadora, sendo tolerada contanto que trabalhe escondida nas salas dos fundos. A caçula, Doris, tem menos sorte: primeiro é recrutada para trabalhos pesados no estaleiro de Danzig, depois é só graças a um policial benévolo que consegue escapar da esterilização forçada.

Mulheres da família afro-alemã Diek
Poder feminino: Emilie Diek com as filhas Erika e Doris (2ª da esq.) e neta Beryl (c.)Foto: Privatbesitz Adomako

Entretenimento como estratégia de sobrevivência

Erika casa-se com o ator Louis Brody, o casal tem uma filha, Beryl, muda-se para Berlim. Também originário de Camarôes, Brody é um dos poucos atores negros que encontram trabalho constante, participando de cerca de 60 filmes; em geral como figurante, apenas em três tem uma papel principal ou falado. Abenaa Adomako só conhece o avô pela TV.

O mundo do cinema é um local seguro, o setor de entretenimento oferece uma das últimas oportunidades de subsistência. Mas nos anos do regime nazista, de 1933 a 1945, Brody não tem alternativa senão atuar em filmes de propaganda colonialista. Repetidamente representa "o selvagem", degradado à imagem racista do africano "primitivo". Caso se recusasse, a alternativa poderia ser a interdição profissional ou o campo de concentração.

A verdadeira espinha dorsal da família são as mulheres. A começar por Emilie Diek, uma prussiana-oriental que não abriu mão de seu amor camaronense e criou as filhas com orgulho. Essas, por sua vez, sobreviveram à perseguição nazista e, depois da Segunda Guerra, mantiveram a família unida, com uma alegria de viver inabalável.

Para Abenaa Adomako, a avó foi uma âncora essencial: "Ela recebia muitas visitas, na casa dela era muito animado. Estava sempre de unhas pintadas de vermelho e sapato de salto alto. Na vizinhança, era super conhecida."

3ª geração: vácuo da Alemanha pós-guerra

A menina Beryl é a futura mãe de Abenaa Adomakos. Enquanto na República de Weimar (1919-1933) Erika vivenciara uma sociedade mais diversificada e tolerante, a filha cresce num vácuo depois da Segunda Guerra Mundial: "A vida negra foi categoricamente apagada. Alguns foram assassinados ou emigraram. Por isso, de repente, havia essa lacuna dolorosa."

Ao contrário da mãe, Beryl é uma bastante reservada: ela se adapta, tenta manter-se invisível no vácuo da Alemanha pós-guerra. Apaixona-se por um homem de Gana, ambos têm Abenaa e Roy. "Minha mãe sempre cuidava para que nós chamássemos o mínimo de atenção possível", recorda a berlinense.

Afro-alemã Abenaa Adomako
Abenaa Adomako se dispõe a resgatar a história negra na AlemanhaFoto: Nadine Wojcik/DW

4ª geração: "Somos muitos!"

Para Abenaa, foi uma tarefa de décadas se liberar dessa autonegação. Por isso, hoje em dia ela é tão barulhenta: aos 30 e poucos anos, foi uma das fundadoras da Initiative Schwarzer Menschen in Deutschland (ISD), voltada para os cidadãos negros do país. "Assim nós encontramos um local onde nos fortalecemos e podemos exigir reconhecimento. Não há como nos ignorar."

A própria comunidade tem que elaborar a história dos alemães negros, que continua sem documentação suficiente nem é ensinada nas escolas. "Em comparação com os Estados Unidos ou o Reino Unido, por exemplo, a Alemanha ainda está engatinhando", avalia Abenaa.

Enquanto muitos afro-americanos descendentes de escravos podem acompanhar seus históricos familiares nos arquivos, e suas histórias há muito integram a memória coletiva, em filmes como A cor púrpura, de Steven Spielberg, ou 12 anos de escravidão, de Steve McQueen, na Alemanha ainda falta trabalho de base.

5ª geração: quotidiano afro-alemão vivido

No projeto Stolpersteine (Pedras de tropeço), iniciado em 1992 pelo artista Gunter Demnig, pequenas placas memoriais encrustadas na calçada relembram as vítimas do nazismo na Alemanha. Mais de 100 mil já foram instaladas diante de suas antigas moradias, porém até agora apenas seis são dedicadas a indivíduos negros.

Entre essas primeiras, desde o começo de 2023, duas homenageiam Erika Diek e Louis Brody (cujo nome real era Ludwig M'bebe Mpessa), à porta da última residência do casal em Berlim.

A avó morreu em 1999, antes de receber esse reconhecimento tardio, mas ele comove muito a mãe, Beryl, relata Abenaa Adomako: "Ela sempre chora muito quando eu a trago para os nossos encontros. Sempre fizeram muita falta na vida dela esses momentos, em que gente negra tem a oportunidade de contar suas histórias."

Placas memoriais do projeto Stolpersteine
Ludwig e Erika Emilie Mpessa: de 100 mil "Stolpersteine", só seis são dedicadas a indivíduos negrosFoto: Fabian Sommer/dpa/picture alliance

Abenaa também teve uma filha, Antonia Adomako. Na escola primária, a professora insistia em colocá-la na classe de Alemão como Idioma Estrangeiro, obviamente motivada por sua cor de pele. Hoje com 24 anos, ela segue a carreira de artista em Londres, e em seus trabalhos fotográficos também tematiza a história familiar.

Ser negra já é bem diferente para a quinta geração dessa família afro-alemã: "Minha filha vive mais relaxada do que a minha geração. Enquanto eu estou mais em modo de luta, ela vivencia uma diversidade em que certas discussões sequer vêm à tona."

Ao contrário da avó Erika, que nasceu e morreu no leste da Alemanha e nunca esteve na terra de seus ancestrais, Abenaa frequenta regularmente os encontros de família em Gana, onde nasceu seu pai. Com esses visitas, ela recarrega suas "baterias" afro-alemãs.