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Perdendo a paciência

Augusto Valente3 de maio de 2003

Os pacientes alemães cansaram-se de ser vítimas caladas da imperícia e negligência. Eles partem para a ofensiva. Associações de médicos temem uma escalada de processos jurídicos, à moda americana.

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Médicos x doentes: todo cuidado é poucoFoto: Bilderbox

Na Grécia antiga, os médicos tinham boas razões para querer dar o melhor de si pela recuperação do doente: assim como na Mesopotâmia e na Babilônia, um fiasco grave podia lhes custar a vida. Ou, com "sorte", apenas uma das mãos.

Através dos séculos, os discípulos de Hipócrates conquistaram um status próximo à divindade, inclusive impunidade quase absoluta. Porém na Alemanha a relação entre pacientes e médicos passa por uma revolução. O humilde doente de antes transforma-se cada vez mais num cliente exigente da indústria medicinal. Em conseqüência, a tônica do relacionamento também se desloca: desconfiança e medidas jurídicas profiláticas tomam o lugar das tradicionais boa-fé e cooperação mútua.

É possível que a reviravolta se deva ao número crescente dos erros médicos nos últimos anos. Apesar da sintomática inexistência de uma estatística precisa, o Instituto Robert Koch registra, por ano, 12.000 casos comprovados de imperícia. Estes vão do diagnóstico errado de câncer de mama à fatídica delonga de uma operação de intestinos ou a complicações de parto que passam despercebidas.

Em contrapartida, as associações de pacientes calculam em torno de cem mil o número real de tais ocorrências. Sobretudo as pessoas mais idosas e indefesas são freqüentemente vítimas silenciosas de negligência e diagnose falha. Como a do médico de um lar para idosos em Düsseldorf que, no início de 2002, atestou o óbito de uma senhora. No dia seguinte contatou-se que, na realidade, esta falecera de hipotermia, horas mais tarde, na geladeira do necrotério: na pressa de desocupar o leito, o doutor não esperara por sinais inequívocos de morte.

O caso de Hans Peter Friedl, ex-chefe de uma clínica da Universidade de Freiburg, é elucidativo do status semidivino da classe: somente após numerosas falhas mais ou menos graves, acumulados ao longo de anos, ele foi recentemente levado às barras da lei. E mesmo então, confrontado com a dor e danos permanentes causados a suas vítimas, o cirurgião não deu sinais de remorso.

Os aliados tornam-se inimigos mortais

Escândalos gritantes assim permanecem exceção. Porém não é de espantar que, informados da existência de terapeutas tão inescrupulosos e incompetentes, os pacientes estejam mais dispostos a se defender. O montante das indenizações se eleva, assim como as exigências de restituição por parte das caixas de saúde. Entre 1990 e 2000 dobrou o número das queixas nas seções de conciliação das câmaras médicas da Alemanha, chegando a quase dez mil.

Ärztin betrachtet eine Röntgenaufnahme
Uma atividade cada vez mais arriscadaFoto: Bilderbox

Os representantes da classe temem que se estabeleça um cenário comparável ao dos Estados Unidos, onde os astronômicos requerimentos de indenização de advogados especializados colocam os profissionais da medicina na defensiva. Na Alemanha, alguns membros da classe médica já começam a defender a política de tratar o paciente como um litigante em potencial.

Porém a situação no país está longe de comparar-se à dos EUA: afinal, 90% dos casos ainda são resolvidos fora dos tribunais, e nem sempre para vantagem dos doentes. Assim a atitude dos médicos reflete menos uma ameaça real do que seu próprio medo. Um sentimento que também marca negativamente a relação entre doutor e paciente.

A cortina fatal do silêncio

A solução parece estar naquilo de que mais carece o setor de saúde: comunicação. Pois a falta de conversa – humana com os pacientes e competente entre colegas – não apenas eleva a probabilidade de um erro. O distanciamento excessivo por parte do médico e sua incapacidade de admitir complicações são geralmente fatores decisivos que levam o paciente a apelar para os recursos da lei.

Tal se aplica em especial aos casos que, do ponto de vista médico, são mais complicados – e portanto mais difíceis de comprovar juridicamente – do que um chumaço de algodão esquecido durante uma intervenção cirúrgica ou a amputação da perna errada.

Como explicou Ursula Wens, da Central para o Consumidor de Hamburgo, à revista Die Zeit, a experiência demonstra: "Por si mesmos, a maioria dos atingidos não deseja apresentar queixa. Eles aceitam plenamente que um médico cometa erros, e só vão a tribunal se o terapeuta lhes parece desonesto, arrogante ou rebarbativo". Ao invés de agir com compreensão, credibilidade e respeito, muitos profissionais já rechaçam qualquer pergunta de antemão e com hostilidade, "ou então não são capazes de dar explicações plausíveis e compreensíveis", acrescenta a consultora.

Formação médica ignora a relação humana

O presidente da Câmara dos Médicos de Berlim, Günther Jonitz, explica a perspectiva contrária: a arrogância demonstrada por tantos médicos em situações de conflito é, acima de tudo, um recurso de autodefesa. Pois a eventualidade de uma imperícia grave representa uma catástrofe, "próxima à aniquilação existencial".

Não se trata, em absoluto, apenas do aspecto financeiro, do medo de que a notícia se espalhe, da perda da reputação profissional, explica Jonitz. Os sentimentos de culpa gerados são mais profundos, implicando um dano à auto-imagem de protetor benfazejo, o qual, até mesmo por razões morais, não tem o direito de errar.

Um outro motivo para a má comunicação no consultório médico é o fato de a formação normal não preparar para uma conversa com paciente ou colegas, em casos delicados. Somente algumas poucas faculdades isoladas levam em consideração a importância da comunicação para um doutor: na maioria delas não se treina nem mesmo a conversa cotidiana, com fins de diagnóstico e terapia.