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PT perdeu bandeira da ética, diz historiador

Marina Estarque6 de novembro de 2014

Apesar de escândalos de corrupção, Lincoln Secco destaca marca social deixada pelos governos Lula e Dilma. Reformas mínimas transformaram legenda em referência para os mais pobres, diz o autor do livro "História do PT".

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Foto: Reuters

Após vencer as eleições mais acirradas desde a redemocratização, o Partido dos Trabalhadores (PT) e a presidente reeleita, Dilma Rousseff, têm o desafio de construir um governo de coalizão em meio a um cenário de crescente polarização social e oposição fortalecida.

Para o historiador e professor da USP Lincoln Secco – autor do livro História do PT – a tarefa não será fácil. A legenda vive, segundo ele, uma crise de identidade, desencadeada pelos primeiros escândalos de corrupção, em 2005. Entretanto, o estudioso ressalta a força política e social do PT, que deixou uma "marca social profunda" em seus 12 anos de governo.

Com o mensalão, "o partido perdeu a bandeira da ética", aponta. Entretanto, o estudioso ressalta a força política e social do PT, que deixou uma "profunda marca" em seus 12 anos de governo.

Em entrevista à DW, Secco também fala sobre a possibilidade de Lula se candidatar à Presidência em 2018. O historiador acredita que interessa ao PT tê-lo como "coringa". Por outro lado, considera que a presença política do ex-presidente impede que outras lideranças cresçam dentro do partido.

DW: As eleições recentes foram as mais acirradas desde a redemocratização. O senhor acha que o PT saiu enfraquecido do pleito?

Lincoln Secco: Acredito que as eleições de 1989 foram ainda mais acirradas. Na ocasião, o PT perdeu, inclusive entre os eleitores mais pobres. Dessa vez, o PT venceu nesse segmento, que, no final, fez a diferença. Na verdade, o partido já estava muito enfraquecido. Em primeiro lugar, pelo desgaste de ser governo há tanto tempo. Mas, principalmente, pelos escândalos de corrupção, que comprometeram o apoio dos setores da classe média tradicional.

Isso tem uma razão histórica: o PT, durante mais ou menos vinte anos, foi o partido de reivindicação social e ética. Ele fez esse discurso. Com o mensalão, o partido perdeu a bandeira da ética. O desgaste aumentou a partir de junho de 2013, quando parte das insatisfações com os governos se tornou militante, primeiro nas redes sociais e depois nas ruas. Existe hoje uma militância de direita, que já atuou nessas últimas eleições e vai continuar fazendo protestos. Mas o PT não está condenado a fazer seu último mandato. Mesmo acuado, no canto do ringue, apanhando muito, ele tem uma força social que não é nada desprezível.

Lincoln Secco Historiker Brasilien
Secco: "Com o mensalão, o partido perdeu a bandeira da ética"Foto: privat

O senhor mencionou que o PT perdeu a bandeira da ética. O partido está vivendo uma crise de identidade?

Na verdade, o partido tem tentado se renovar. No último congresso, o PT aprovou medidas internas, como a garantia da participação de 50% de mulheres na direção. E a proibição de que os parlamentares tenham mais de dois mandatos consecutivos, o que tenta impedir que os eleitos tenham um poder excessivo sobre a máquina partidária. Então já há certa consciência na direção de que essa crise de identidade existe. É mais do que isso, é uma crise de relação com a juventude e com os movimentos sociais.

Fala-se muito do retorno do Lula em 2018. O partido tem dificuldade de criar ou manter outras lideranças?

A dificuldade surgiu quando as principais lideranças históricas do PT foram abatidas pelo escândalo do mensalão. Acho que não há paralelo no mundo, de um partido social-democrata, no governo, que tenha tido dois ex-presidentes na prisão. Eles poderiam suceder o Lula, mas estão fora do jogo político permanentemente. Foi um corte geracional, porque os escândalos também abateram várias lideranças intermediárias. Agora, uma surpresa nessas eleições foi a militância petista, que estava adormecida e voltou às ruas, e algumas lideranças regionais que se fortaleceram, como Jaques Wagner, da Bahia. É uma figura histórica do partido, que elegeu seu sucessor e pode ser uma potencial candidatura para 2018. Mas a sombra do Lula impede o crescimento de qualquer outra liderança no partido, isso desde o princípio do PT. Enquanto o Lula for uma ameaça de candidato, outras candidaturas não vão florescer.

Mas o senhor considera isso uma possibilidade real, o retorno do Lula?

Eu acho que faz parte do jogo do Lula e do PT sempre tê-lo como coringa. O Lula é uma vantagem estratégica para o partido. Durante as eleições, no segundo turno, o PT tinha dois candidatos fazendo campanha ao mesmo tempo no Brasil. O PSDB não pôde fazer o mesmo, porque não tem nenhuma liderança do porte do Lula. Tudo depende da evolução do governo Dilma. Se ele vai ser candidato ou não é indecifrável no momento.

Muito se fala sobre os conflitos da Dilma com o Lula e o PT. Após essa eleição acirrada, como o senhor vê a relação da presidente com o partido?

Eu nunca apostei numa dissociação entre Dilma e Lula. Acho que brigas podem ocorrer em qualquer partido político, mas acho uma dissociação praticamente impossível. A Dilma depende muito do Lula para governar. Claro que ela também depende dos seus aliados e do Congresso, mas o Lula controla o PT e ainda tem uma influência social imensa no Brasil. E ele precisa da Dilma, tanto se quiser ser candidato em 2018 quanto para apoiar outra pessoa.

Durante a campanha, Dilma acusou os adversários de querer cortar gastos sociais, aumentar os juros e "entregar o Banco Central aos banqueiros". Entretanto, agora que foi reeleita, o BC acaba de subir os juros e há sinais de que outras medidas similares estão a caminho. Como o PT vai fazer esse governo de coalizão com tantas contradições?

É a grande dúvida de todo mundo e também das forças de esquerda que apoiaram a Dilma no segundo turno. Pode ser que ela faça uma opção parecida com a do Lula em 2003. Ele moderou o discurso na campanha de 2002 e manteve em grande parte a política econômica do FHC no início do seu mandato. Ao mesmo tempo, promoveu um aumento inédito dos gastos sociais, especialmente do Bolsa Família. De um lado, Lula pacificou o setor financeiro, de outro, atendeu parte das demandas históricas do PT e da esquerda. Pode ser que a Dilma sonhe com uma recuperação desse tipo. Ela tomaria medidas impopulares no início do governo, contentando o mercado financeiro e reequilibrando as contas, e manteria e ampliaria alguns programas sociais que não custam tanto.

O senhor acha que essa é uma boa estratégia para o PT nesse momento?

Esse modelo funcionou em 2003, mas a questão é se ele dá certo hoje. Porque, a partir de junho de 2013, surgiram novas demandas da sociedade que não custam mais tão pouco. Melhorar infraestrutura, mobilidade urbana, educação e saúde não é a mesma coisa que atender aos beneficiários do Bolsa Família. Ela pode tentar seguir esse caminho, mas acho que ele não tem mais viabilidade histórica. Depois de reeleita, Dilma aumentou os juros e há rumores de que ela vai anunciar diminuições nos gastos públicos. Se ela for por esse caminho, vai frustrar a base que a elegeu e, ao mesmo tempo, não vai conquistar quem votou contra ela.

O sentimento antipetista foi uma das marcas dessas eleições. Como o senhor explica isso?

No Brasil, existe uma base histórica e popular de direita desde os anos 30. Ela assumia a forma de anticomunismo ou antigetulismo. Já existia um antipetismo forte nos anos 80 e 90, que agora agrega o tema da corrupção, amplificado pelas redes sociais e pela mídia. Com as manifestações de junho, o sentimento antipetista ganhou uma base militante. Não que as manifestações tenham sido só isso, mas contribuíram com essa mobilização de direita. Recentemente, o PSDB tem tentado se distanciar das manifestações pelo impeachment da Dilma. O que é ainda mais perigoso, porque é uma direita popular sem liderança.

O PT completou 12 anos no poder e segue para mais um mandato. Qual o legado do partido para o país?

Mesmo que não tivesse chegado ao poder, o PT continuaria sendo uma das maiores forças políticas do Brasil, porque é um partido com uma história única. Ele nasceu como partido de massa, surgido de movimentos sociais e sindicais, de baixo para cima. Com forte presença nas lutas sociais e institucionais. Ele já seria, só por isso, um partido muito importante na história do país.

E durante o governo?

Depois de ter chegado ao poder e ter se transformado num partido de governo, embora tenha feito muitas concessões ao establishment, ele deixou uma marca social profunda. Se a gente fosse fazer uma comparação com reformas sociais de outros países, [a marca social do PT] nem seria muito significativa. Mas, devido ao atraso do Brasil nessa área, reformas mínimas transformaram o PT numa referência para a população mais pobre.