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Reescrevendo o mito

Soraia Vilela15 de novembro de 2002

Após vir à tona que o cérebro de Ulrike Meinhof, mentora da Facção do Exército Vermelho (RAF), havia sido conservado por 26 anos, país questiona necessidade de reescrever a história do terrorismo dos anos 70.

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Ulrike Meinhof, presa a 16 de junho de 1972Foto: AP

Desde o 11 de setembro de 2001, o terrorismo povoa mais do que nunca o repertório da mídia. Considerando que 2002 marcou os 25 anos do chamado Outono Alemão – período que marcou o ápice de ação da Facção do Exército Vermelho (RAF) –, o tema foi e tem sido remoído pela imprensa alemã.

A história do país é elaborada em discussões, que explicitam desde as ligações entre a RAF e organizações terroristas palestinas até a descoberta das tendências nazistas do legista responsável pela autópsia nos cadáveres dos terroristas Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe, mortos em 1976.

Voyeurismo tardio – Entre os escândalos, suscitados para satisfazer uma espécie de voyeurismo tardio coletivo, veio à tona no último 8 de novembro, através do semanário Der Spiegel, a notícia de que o "cérebro da RAF" – leia-se aqui o da jornalista e mentora do grupo Ulrike Marie Meinhof – havia sido conservado em uma solução de formol durante todos os 26 anos que decorreram após sua morte, por suicídio, a 9 de maio de 1976.

Regine Röhl, uma das filhas gêmeas de Meinhof, entrou com uma ação contra o neurologista Jürgen Peiffer, que havia examinado o cérebro da terrorista após sua morte, por determinação da Promotoria de Stuttgart.

Falta de ética – O que Peiffer, hoje com 80 anos, não comunicou em todo este tempo nem mesmo à família de Meinhof, é que o corpo da jornalista havia sido liberado sem seu cérebro, mantido desde então no Instituto de Neuropatologia de Tübingen. Röhl acusa o neurologista de falta de ética, ao sonegar por quase três décadas uma informação de tal importância.

Há cinco anos, Peiffer fez com que o cérebro de Meinhof fosse levado às mãos do professor Bernhard Bogerts, um pesquisador do Instituto de Psiquiatria de Magdeburg, que pretendia comparar as patologias supostamente detectadas no cérebro da ex-terrorista com anomalias observadas no cérebro do professor Ernst Wagner, que assassinou a mulher, quatro filhos e seis vizinhos no ano de 1913.

Insanidade mental –

As obscuras e duvidosas empreitadas dos dois cientistas têm um objetivo: provar a insanidade mental de Meinhof, supostamente causada por uma operação feita em 1962, em que se pretendia eliminar de Meinhof um hemangioma cerebral, tumor formado pela proliferação de vasos sanguíneos.

Segundo as suspeitas do neurologista Peiffer e do psiquiatra Bogerts, a cirurgia teria deixado seqüelas irreversíveis, sendo responsável pelo "grau patológico de agressividade" de Meinhof. Declarações de sua mãe de criação, Renate Riemeck, de que as mudanças de atitude da filha poderiam, após a operação, "ter servido de material para um romance de Dostoiévski", servem, segundo os cientistas, para confirmar as suspeitas.

Expostos ao ridículo –

Peiffer já havia, inclusive, exposto sua tese publicamente em 1976, por ocasião da morte de Meinhof. Não lhe deram ouvidos, muito provavelmente pelo risco do "ridículo, caso viesse a se tornar público que todas essas pessoas tivessem ido atrás das idéias de uma louca", segundo palavras atribuídas a Peter Zeis, então Procurador da República.

Além disso, parte da sociedade alemã não deixou de nutrir uma espécie de simpatia, senão pelas ações da RAF, pelo menos por seus ideais. Diferenciou-se sempre entre o crime comum e o político, dando uma espécie de aval ao segundo, que, afinal, tinha "boas intenções".

Atribuir todo o ideário da RAF à insanidade mental de Meinhof seria expor não só seus seguidores diretos ao ridículo, mas toda a simpatia de parte da inteligentsia de então com as premissas da RAF. Incluem-se aí aí nomes como o de Jean-Paul Sartre, que chegou a visitar Andreas Baader, ex-companheiro de Meinhof, na prisão em Stammheim.

Redução da história –

Hoje, 26 anos passados, num tempo em que a "estética RAF" já foi até mesmo banalizada em "moda retrô" pela cultura pop, torna-se mais fácil enterrar o resto de aura que o terrorismo de esquerda alemão ainda carregava, na patologia de um cérebro enfermo. Isso, afinal, possibilitaria deixar de discutir sobre as causas políticas, econômicas e sociais do fenômeno.

Como analisa o diário Neue Zürcher Zeitung, "mesmo que possa parecer prático a muitos reduzir o terrorismo – ou até mesmo o mal no mundo – a particularidades fisiológicas de um cérebro, isso seria uma proposta completamente disparatada".

Não deixa de ser por ironia do destino, no entanto, que o ícone Ulrike Meinhof, quase três décadas mais tarde, volte a suscitar discussões na sociedade alemã pelas próprias pernas, ou melhor, pelo próprio cérebro. Mesmo que conservado em uma solução de formol.