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Regime intensifica campanha contra islamistas no Egito

Kristen McTighe, do Cairo 25 de março de 2014

Pena de morte para mais de 500 apoiadores da Irmandade Muçulmana mostra nova tática do governo militar para combater rivais políticos e reforça percepção de que país se aproxima mais do autoritarismo que da democracia.

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Foto: AFP/Getty Images

A surpreendente decisão de um tribunal egípcio nesta segunda-feira (24/03) – que condenou à morte 529 pessoas ligadas à Irmandade Muçulmana – é a etapa mais recente da investida do atual governo contra os apoiadores do ex-presidente islamista Mohamed Morsi, deposto em 2013.

"Jamais documentamos outro incidente com um número tão grande de sentenças de morte, tanto na história do Egito ou ao redor do mundo", diz Hassiba Hadj Sahraoui, vice-diretor para o Oriente Médio e Norte da África da Anistia Internacional.

Segundo ele, a imposição de tantas penas de morte em um único caso faz com que o Egito ultrapassasse, em um dia, a média anual da maioria dos países que aplicam tal sentença. Após o anúncio da decisão, vídeos na internet mostravam choros e gritos de desespero dos familiares dos condenados do lado de fora do tribunal, na província de Minya.

"Isso demonstra que o regime militar mudou de tática, usando ao invés das forças especiais e rifles, o Judiciário egípcio", observa Abdullah El-Haddad, porta-voz da Irmandade Muçulmana em Londres, onde a organização se estabeleceu após ser banida pelo governo, sob acusação de terrorismo.

Ausência dos réus

Dos 529 réus sentenciados à morte, apenas 147 estavam presentes no tribunal. Entre os acusados, só 16 foram inocentados. O caso é relacionado à violência que irrompeu em agosto último, quando forças de segurança egípcias dispersaram dois protestos no Cairo, resultando na morte de centenas de manifestantes.

Os réus foram acusados pelo ataque a uma delegacia de polícia e roubo de armas, além da morte de um policial e da tentativa de assassinato de outros dois oficiais. Delegacias policiais e edifícios do governo foram alvos de ataques de supostos partidários do ex-presidente. A violência sectária aumentou, igrejas foram saqueadas e incendiadas por islamistas, que acusam a Igreja Cóptica de estar por trás do golpe militar contra Morsi.

Ägypten Muslimbrüder Protest Polizei Tränengas 20.12.2013
Em 2013, repressão a protestos da Irmandade Muçulmana resultaram em milhares de mortesFoto: Reuters

A proporção do julgamento e a rapidez com que foi realizado – em apenas duas sessões – geraram críticas generalizadas. Os advogados de defesa alegam que os procedimentos violaram as normas legais.

"[A decisão] não se baseia em fatos legais, mas sim no estado de espírito do juiz", disse à DW Ahmed Shabeeb, um dos advogados de defesa. Ele descreveu uma cena caótica no tribunal – onde a presença de jornalistas foi negada– em que mais de cem réus se apertavam na cela colocada dentro da corte, cantando hinos de protesto durante o julgamento.

Ele conta que o juiz Said Youssef recusou o pedido dos advogados de defesa pelo adiamento do caso, para que pudessem examinar as centenas de documentos referentes aos processos. Quando o defensor do réu Mohamed Ali Hassouna alegou a inconstitucionalidade do julgamento, Shabeeb conta que o juiz, enfurecido, respondeu que o caso "nada tem a ver com a Constituição".

O juiz negou o pedido dos advogados para que se afastasse do caso, e na segunda-feira os réus e seus defensores não puderam estar presentes no tribunal. A decisão – o maior veredicto de pena de morte da história do país – foi aplicada sem que os argumentos da defesa pudessem ser ouvidos.

"Vemos partidários do ex-presidente serem julgados e condenados rapidamente, vemos mais de 500 sentenças de morte", comenta Hadj Sahraoui, da Anistia Internacional. "Por outro lado, as forças de segurança dificilmente são responsabilizadas por qualquer coisa que façam, certamente não pelas mortes de manifestantes."

Judiciário em colapso

Desde a derrubada de Morsi pelos militares, após protestos em massa contra o ex-líder, milhares de apoiadores do ex-presidente foram presos, as prisões ficaram superlotadas e o sistema legal, sobrecarregado, enquanto o governo afirma estar combatendo o terrorismo.

"Isso demonstra claramente o estado lamentável do sistema judiciário egípcio", observa Michael Hanna, especialista em política externa americana para o Oriente Médio e o Sul Asiático. "[O Judiciário] entrou em colapso em razão do número de detentos a serem processados desde julho." Para ele, o processo é claramente uma farsa.

A decisão do tribunal segue agora para a apreciação do grande mufti, o mais alto líder religioso muçulmano, que, segundo a lei egípcia, deve rever e ratificar todas as sentenças de morte no país.

"É duvidoso que as sentenças sejam mantidas. As sentenças de morte deverão quase que certamente ser derrubadas pelas apelações, possivelmente antes mesmo do mufti expressar sua opinião a respeito, que, em todo caso, não deverá ser a favor da decisão da corte", explica H.A. Hellyer, especialista em mundo islâmico do Instituto Brookings, em Washington.

"De qualquer modo, o simples proferimento da sentença, por si só, já é significativo, e vai levantar questões em âmbito nacional e internacional sobre a legitimidade do processo, do início ao fim", analisa Hellyer.

Autonomia dos juízes

"[A decisão do tribunal] reforça as percepções negativas de que nada disso se assemelha, de maneira alguma, a uma transição para a democracia, se parecendo muito mais com autoritarismo", observa Hanna.

Em resposta à repercussão do caso, o governo egípcio divulgou uma declaração que aparentemente visa acalmar as revoltas com a decisão do tribunal. Nela, afirma que o Judiciário é inteiramente independente e não é influenciado de qualquer maneira pelo Executivo.

A declaração diz ainda que o veredicto foi proferido "após estudos cuidadosos sobre o caso", e trata-se apenas do primeiro passo do processo judicial.

"O que é delicado ao lidar com esse tipo de procedimento é que os juízes têm muita autonomia. Claramente, esse juiz não acata ordens de alguma autoridade superior", diz Hanna.

No entanto, alguns analistas denunciam que os juízes também estariam sendo contaminados pelo ódio contra a Irmandade Muçulmana, que se espalhou nos últimos meses pelo país, amplamente polarizado. "Esse tipo de medida repressiva apenas pode ocorrer nesse tipo de atmosfera que as autoridades criaram", explica Hanna.

Mohammed Badie hinter Gittern
O líder da Irmandade Muçulmana, Mohamed Badi, será julgado nesta terça-feira em MinyaFoto: Ahmed Gamil/AFP/Getty Images

Na opinião de Hadj Sahraoui, a União Europeia deve denunciar categoricamente as sentenças de morte, e não aplicar apenas punições leves. "Essa sentença mostra até que ponto as autoridades estão prontas para ir", diz. "Qualquer silêncio ou resposta calada da UE, dos EUA e da comunidade internacional vai apenas encorajar as autoridades."

Nesta terça-feira deverá ser aberto outro caso, em que 683 réus irão a julgamento, também na corte de Minya, por acusações semelhantes. Entre eles estará o líder da Irmandade Muçulmana, Mohamed Badie, que encara múltiplas acusações.

A decisão do tribunal na segunda-feira veio em meio às preparações para as eleições presidenciais no Egito, nas quais se espera que o líder militar do país, o Marechal Sisi se firma como figura política mais forte do Egito:marechal Abdul Fattah al-Sisi – artífice do golpe contra Morsi – deva concorrer e sair como vencedor. As autoridades ainda devem anunciar a data do pleito, que será seguido de eleições parlamentares.

"Há um efeito assustador em saber que as eleições se aproximam", afirma Hadj Sahraoui. "O que devem fazer os manifestantes, ficar em casa ou arriscar uma sentença de morte?"