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Ruanda estava psicologicamente destruído

Dirke Köpp (ca)6 de abril de 2014

Em 1994, o jornalista Alexander Kudascheff foi para Ruanda logo após o genocídio. Em entrevista, ele relata o que viu e fala sobre o papel da comunidade internacional, hoje e na época.

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Foto: picture-alliance/dpa

Desde janeiro de 2014, o jornalista Alexander Kudascheff, de 62 anos, é o editor-chefe da DW. Em sua carreira de repórter, ele esteve em várias regiões do mundo, e em 1994 cobriu o genocídio em Ruanda.

Vinte anos após uma das maiores catástrofes da história recente da humanidade, Kudascheff diz que encontrou em Ruanda um país maravilhoso e pessoas incrivelmente simpáticas, mesmo em meio à destruição e à vulnerabilidade. "Acredito que, na ocasião, compreendi aquilo como uma espécie de erupção arcaica. E, quando tudo passou, as pessoas voltaram a si."

DW: Imediatamente após o genocídio em Ruanda, o senhor foi ao país cobrir o massacre para a Deutsche Welle. Quais foram as suas primeiras impressões?

Alexander Kudascheff: Pode parecer estranho, mas quando cheguei ao país de carro, vindo de Uganda, eu pensei: "Que país lindo". Desci do carro e olhei para as curvas suaves das montanhas e para as florestas maravilhosas – e, de repente, eu estava olhando para o cano de uma arma: na minha frente estava uma criança-soldado, entre 9 e 11 anos de idade. Na época, eu ainda fumava e perguntei-me: "Como vou acalmar esse rapaz, com ou sem cigarro?".

Então conversei com o menino. Ele me contou que o líder rebelde Paul Kagame [atual presidente de Ruanda] havia passado por ali alguns dias antes, e que agora ele estava incumbido de vigiar a área. Então o parabenizei por aquela tarefa honrosa, não ofereci nenhum cigarro e segui viagem.

O senhor se deparou com outras crianças-soldados?

Eu encontrei um número relativamente grande delas. Mas elas não estavam uniformizadas nem pertenciam de forma reconhecível a uma unidade. Elas simplesmente andavam de um lado para o outro, e eu desconfiei que algumas delas tivessem encontrado armas descartadas pelas milícias hutu, que haviam fugido. Na ocasião, Ruanda era um país fortemente armado, e muitas dessas armas estavam em mãos de crianças.

Alexander Kudascheff DW Chefredakteur Kommentar Bild
Kudascheff relata ter visto muitas crianças com armas nas mãosFoto: DW/M. Müller

O senhor viajou com um motorista ugandense em direção à capital Kigali. Como descreveria sua viagem?

Partimos de Uganda em direção a Kigali. O único quarto de hotel que encontramos não tinha janela, água nem eletricidade. O preço único era um dólar. Dividi o quarto com o motorista. Viajamos por todo o país e atravessamos a fronteira até Goma, no leste da República Democrática do Congo.

Queríamos ver o que acontecera aos refugiados. Na ocasião, a maioria dos jornalistas internacionais não estava em Ruanda, mas na tragédia dos refugiados de Goma. Em Ruanda, o que interessava era a busca por assassinos escondidos da etnia hutu. Tentei entrevistar Paul Kagame, mas a resposta era sempre: "Amanhã, monsieur, amanhã". Percorremos todo o país e até hoje não consigo deixar de pensar que Ruanda é tão incrivelmente linda e que achei as pessoas incrivelmente simpáticas, mesmo em meio à destruição e à vulnerabilidade.

O senhor achou as pessoas simpáticas – é o que dizem muitos que viajam por Ruanda. Mesmo assim, durante o genocídio, muitos ruandeses foram capazes de cometer as piores atrocidades. Qual foi sua forma de lidar com isso?

Provavelmente só encontramos as vítimas. Também não se pode entender como os alemães foram capazes de enviar 6 milhões de pessoas para a câmara de gás. Acredito que, na ocasião, compreendi aquilo como uma espécie de erupção arcaica. E, quando tudo passou, as pessoas voltaram a si.

Paul Kagame
Paul Kagame está à frente do governo de RuandaFoto: Reuters

O país estava psicologicamente destruído. Passávamos por incontáveis pilhas de crânios, ouvíamos as pessoas falando sobre como seus parentes haviam morrido ou sido massacrados. Não importa onde se estivesse, notava-se sempre que as pessoas queriam falar sobre o que vivenciaram. Dava para ver o que se passava com elas, uma mescla de alegria por sobreviver, vergonha por sobreviver e medo por sobreviver: "O que vai acontecer conosco?".

No entanto, durante o genocídio, os olhares do mundo não estavam voltados para Ruanda.

Também como jornalista vem uma vergonha a posteriori, por se ter olhado tão pouco. Mas aqueles que detinham a responsabilidade na ocasião devem se envergonhar ainda mais: em primeira linha, as Nações Unidas, que, de forma patética, não fizeram nada. Isso vale também para os outros: para o Ocidente, para a Otan e principalmente para a Bélgica, a antiga potência colonial. Os belgas tinham uma relação de longa data com Ruanda, e também eles se perguntaram: "O que fizemos de errado? Por que não fomos capazes de dar um fim a esse genocídio, ou de ao menos atenuá-lo?".

Desde 2000, Paul Kagame é o presidente de Ruanda. Ele tentou alcançar a reconciliação – entre outras medidas, proibindo a definição por etnia. O que acha dessa política?

Acho que o princípio de não ligar para a etnia, na verdade, é correto. Pois assim as pessoas se afastam das tradições racistas. Mas é possível ordenar tal coisa de cima para baixo? Os países socialistas sempre tentaram isso – sem sucesso, pois mal o socialismo caiu, eclodiram problemas nacionalistas por toda parte.

Minha avaliação de Kagame é bastante multifacetada e diferenciada. Economicamente, ele foi muito bem sucedido. Por outro lado, ele pertence a uma das etnias, e não é tão fácil para a outra etnia aceitar isso. Numa entrevista que fiz com ele há cinco ou seis anos, tive a impressão de que estava em paz consigo mesmo. Ele me passou a impressão de ser alguém que, provavelmente, suspeita que também comete erros, mas considera que o cerne de sua política está correto. Se isso está certo e se o dissenso étnico foi superado, provavelmente só se saberá na era depois de Kagame.