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FilmeBrasil

"Todos os cinemas nacionais dependem de incentivos"

14 de abril de 2023

Autora de livro sobre bastidores políticos do audiovisual brasileiro diz que falta no país percepção de que investimento público no setor é legítimo e ressalta que "discurso sobre mamata" não condiz com realidade.

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Cena do premiado "Central do Brasil", de 1998
"Cinema nacional depende da política porque não há que tenha se estabelecido independentemente de governo", diz especialistaFoto: picture-alliance/dpa/Buena_vista

Investimentos públicos em cinema se tornaram alvo de polêmica no debate político recente, sobretudo durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Lançado este mês pela editora Fino Traço, o livro O Cinema Que Não Se Vê: A Guerra Política Por Trás da Produção de Filmes Brasileiros no Século XXI explica por que as produções nacionais são dependentes de leis federais e de toda a politicagem envolvida nos bastidores.

A jornalista e pesquisadora Ana Paula Sousa, autora da obra, diz que o discurso de "combate à mamata" acabou pegando no setor por causa das leis de incentivo. "[Mas] é um discurso que não condiz com a realidade", rebate ela, que é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) em São Paulo, doutora em sociologia da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com mestrado pelo King's College, de Londres.

Em entrevista à DW, ela avalia que o grande desafio atual do governo federal é a regulação das plataformas de streaming. "Mas é como um medicamento: você não pode tomar demais, porque daí não vai fazer bem também. A gente tem um desafio regulatório pela frente, que é entender que tipo de contrapartidas essas empresas terão de dar para o mercado no qual elas atuam", comenta.

DW: Você ressalta que as maiores empresas do mundo contemporâneo têm o audiovisual entre seus negócios. Como está a inserção do cinema brasileiro nesse mercado?

Ana Paula Sousa: O Brasil está totalmente bem inserido nesse mercado global, as plataformas estão aqui. Mas ainda é um volume muito pequeno. Me espantou bastante o resultado de uma pesquisa que a Ancine [Agência Nacional do Cinema] fez: só 5% das produções exibidas na Netflix e na Amazon Prime são brasileiras.

O que o país precisa nesse momento é saber regular esse mercado de forma a proteger a produção nacional, a fomentar a produção nacional. Mas é como um medicamento: você não pode tomar demais, porque daí não vai fazer bem também. A gente tem um desafio regulatório pela frente, que é entender que tipo de contrapartidas essas empresas terão de dar para o mercado no qual elas atuam. E essa foi uma conversa impossibilitada nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro. Por isso o Brasil está superatrasado na regulação.

Como isso pode ser feito?

O que não falta agora é modelo, exemplos de regulação em outros países. Vários estabelecem cota, obrigatoriedade de uma parte de produção local nas plataformas. Há países que também exigem um investimento de parte do lucro na produção local. Nós, por enquanto, estamos sendo mais explorados do que beneficiados em termos de produção audiovisual, falta um melhor equilíbrio de forças. Mas eu vejo como uma oportunidade de expansão, porque o audiovisual virou uma forma de consumo cultural predominante.  Todo mundo hoje precisa que o audiovisual exista.

O bolsonarismo contaminou o debate sobre investimentos no cinema?

O bolsonarismo contaminou o audiovisual como contaminou toda a área cultural. Existe a questão ideológica, daquilo que o cinema representa, das problemáticas que o cinema brasileiro traz. O então ministro [da Cidadania, pasta que englobava a Cultura na gestão Bolsonaro] Osmar Terra chegou a manifestar a repulsa dele a filmes com pessoas trans. Obviamente havia uma questão ideológica.

Leis de incentivo viraram "coisa de comunista"?

Do ponto de vista do investimento, o que leva ao ataque direto é o fato de que boa parte do cinema independente brasileiro é feito com recursos públicos. Então, as séries, os filmes são feitos, em sua maioria com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual [instituído por lei federal em 2006, durante o primeiro governo Lula], que é composto por recursos de uma taxa paga por empresas de telefonia.

Então, na verdade, não é um dinheiro de imposto, não é um dinheiro de orçamento, mas é um fundo público abastecido por esse recurso. O governo Bolsonaro tinha aquele discurso da mamata, que é um discurso que não condiz com a realidade, mesmo porque o investimento em cultura é um investimento, não é que as pessoas pegam o dinheiro para ficar em casa. Elas usam o dinheiro para a questão cultural. E isso acontece na maioria dos países. A ideia da mamata se espraiou para o audiovisual por causa do Fundo Setorial.

Esse tipo de discurso ficou só na camada da panfletagem política ou afetou o desenvolvimento do cinema nacional?

Essa é uma resposta que eu tenho de dar com muito cuidado. Porque, sim, o bolsonarismo atingiu muito o cinema por ser bolsonarismo, mas acho sempre importante lembrar que a crise da Ancine antecede o governo Bolsonaro. Em 2017, o Tribunal de Contas da União publicou um acórdão no qual apontava risco de colapso na agência, porque havia um problema no modelo de prestação de contas que a Ancine tinha adotado. Na visão do tribunal, a Ancine tinha um passivo incompatível com a continuidade do fomento. Em 2018 a situação foi se agravando, paralelamente houve uma crise política dentro da agência. Em 2019, foi a tal tempestade perfeita: Bolsonaro foi eleito e saiu um outro acórdão do TCU. A agência foi paralisada. Parece que naquele momento o Bolsonaro não tinha nem entendido o que era a Ancine.

Aí houve um problema com o diretor da Ancine, e a agência virou uma questão pública. É quando o Bolsonaro olha para a Ancine e percebe que tem mais uma coisa para destruir na área cultural. Ele chegou a dizer numa live que ia destruir a Ancine, extinguir a Ancine. Essa crise da Ancine, em outro governo teria sido resolvida. Mas num governo que queria dificultar a realização de filmes, essa crise foi um prato cheio.

Na prática, houve atraso na liberação de recursos para vários filmes, tem filmes que estão sendo lançados agora em 2023 porque os recursos para lançamentos ficaram presos na agência. Filmes que podiam ter sido finalizados e que também não tiveram recursos liberados. Tudo por causa dessa crise na agência. E teve uma coisa mais grave, que foi parar na justiça, que foi aquela manifestação do Osmar Terra que pediu o cancelamento de editais para produção de filmes e séries com temática LGBT. Isso era absolutamente inconstitucional. Esse ex-ministro virou réu num processo inclusive. É um caso objetivo que teve continuidade e a justiça acatou essa denúncia.

Por que o cinema brasileiro é tão dependente de investimentos públicos e fica à mercê da guerra política?

Todos os cinemas nacionais dependem de incentivos, por causa do custo do cinema. Mesmo nos Estados Unidos, onde não há um órgão estatal para cuidar do cinema, várias cidades têm, sim, mecanismos de incentivo público, de renúncia [fiscal], para que se invista na produção. No Brasil, o cinema depende da política porque não temos uma política audiovisual que tenha se estabelecido independentemente de governo. Não existe na população brasileira a percepção de que o investimento público em cinema é legítimo.

Mas eu tenho uma notícia boa: a Ancine não foi destruída, ela sobreviveu ao bolsonarismo, mais do que outras instituições culturais, até por ter o formato de agência reguladora. O Bolsonaro não conseguiu colocar lá os delirantes, os três diretores que foram indicados durante o governo Bolsonaro são funcionários de carreira da agência. Apesar do pesadelo, a Ancine conseguiu sobreviver.

Quais são as expectativas do setor neste novo governo Lula?

Com os recursos que o setor já tem, há uma possibilidade concreta de que esse mercado se expanda novamente. Mas há um desafio grande: a regulação das plataformas [de streaming] porque o mercado audiovisual mudou muito de 2019 para cá.