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Vozes contra a corrente

(sv)25 de março de 2003

O alemão Günter Grass critica "a hipocrisia e o cinismo do Ocidente", José Saramago destaca "a cegueira do mundo" e escritores árabes publicam um manifesto em reação ao conflito no Iraque.

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Saramago: nossos governos são comissários políticos das potências econômicasFoto: AP

Na Alemanha, ninguém se admira quando o escritor Günter Grass abre a boca para opinar sobre qualquer acontecimento de ordem política. Surpresa seria se Grass resolvesse se calar, deixando de condenar ou apoiar algum conflito em curso. Conhecido por utilizar o pódio da mídia a serviço de seu engajamento político, o escritor não poderia deixar de atacar mais uma vez: "Desde o 20 de março de 2003, só vale o direito do mais forte. E apoiado nessa injustiça, o mais forte tem o poder de comprar o apoio à guerra de uns, enquanto despreza ou até pune a rejeição de outros", critica Grass.

Enquanto o alemão destaca a "hipocrisia e o cinismo do Ocidente", dizendo-se orgulhoso "de que a maioria da população alemã se oponha à guerra", o escritor português José Saramago, assim como Grass vencedor do Nobel da Literatura, reflete em uma entrevista ao diário alemão Frankfurter Rundschau sobre as atuais relações internacionais de poder. " Há muitas teorias, idéias sobre uma nova ordem mundial e sobre a globalização. Porém, nossos governos são os comissários políticos das potências econômicas", observa Saramago.

Princípio da força -

Em um manifesto publicado dois dias antes da eclosão da guerra no Iraque, escritores árabes, inclusive iraquianos, expuseram à opinião púbica o que acreditam ser a razão dos ataques norte-americanos: o petróleo e o jogo de poder, que acabou transformando "a mera força militar no princípio mais forte da política mundial", segundo publica o diário suíço Neue Zürcher Zeitung. Também o crítico e ensaísta palestino Edward Said alerta para uma diferenciação necessária entre o que ele chama de "a guerra do presidente Bush" e o que seria uma iniciativa americana.

Choque de civilizações -

Saramago opõe-se ainda ao tão difundido conceito de "choque de civilizações", utilizado por estrategistas militares para legitimar atos de violência em nome da paz. "Não compartilho essa avaliação, pois os efeitos recíprocos entre as nossas culturas são enormes e o aspecto de uma colisão entre elas, pressuposto por um clash of civilisations, na minha opinião, não existe", completa o escritor português.

Também Said, autor de Orientalismo - um estudo que rastreia os estereótipos e preconceitos do Ocidente em relação ao Oriente - vê no conceito de "choque de civilizações uma idéia falsa e errônea, pois as relações entre os povos e culturas são muito mais influenciadas por uma fecundação e amalgamação recíproca".

Tipos de fundamentalismo -

Para entender e refletir melhor sobre o que é taxado cegamente de "fundamentalismo islâmico", Saramago sugere um olhar de volta à própria história do Ocidente, que testemunhou dos horrores da Inquisição até um "outro tipo de fundamentalismo, encontrado hoje nos mosteiros", por exemplo, onde "milhares de pessoas distanciam-se do mundo, para unirem-se a um sistema corporativo".

Saramago contesta ainda a afirmação de que o Iraque seria "um perigo para a paz mundial", lembrando que "muitos países dispõem de armas de destruição em massa. Também os EUA dispõem de um enorme potencial deste tipo de armas. Eles seriam então uma ameaça à paz mundial por causa disso?", pergunta.

Ao lançar um olhar crítico "à hegemonia norte-americana em todo o mundo", Saramago une-se de certa forma à voz de Grass, quando este questiona se "são estes ainda os Estados Unidos da América dos quais tínhamos, por várias razões, uma boa lembrança? Os doadores generosos do Plano Marshall, os professores pacientes em matéria de democracia? Não somos só nós que vivenciamos como essa imagem empalideceu, tornando-se, com o passar dos anos, um mero ideal distante, transformando-se agora até mesmo em uma caricatura de si mesma".