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A bordo do avião que leva ajuda a crianças angolanas doentes

4 de junho de 2014

É assim há duas décadas: a ONG Friedensdorf International vai a Luanda recolher crianças doentes para tratamento médico na Alemanha e leva de volta outras já recuperadas. A DW África acompanhou a viagem.

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Foto: DW/M. Sampaio

Depois de um ano na Alemanha e de várias operações à perna, Angelina, de 12 anos, está ansiosa por aterrar em Luanda.

"Estou muito contente porque vou ver de novo os meus irmãos, a minha mãe, toda a minha família. Mas também estou um pouco triste porque vou deixar os amigos e as trabalhadoras queridas", conta Angelina na festa de despedida organizada pela Friedensdorf International na cidade de Oberhausen, no centro-leste da Alemanha.

Angola Friedensdorf 20 Jahre Hilfe
Angelina (esq.), uma das crianças angolanas que voltou para casa em maio, com amigas que fez na AlemanhaFoto: DW/M. Sampaio

Desde a sua criação, há 47 anos, a organização não-governamental já ajudou crianças doentes de mais de 50 países, incluindo mais de 3 mil crianças angolanas.

Cinco dias depois da festa de despedida, chega a hora da partida. É a viagem número 54 da "Aldeia da Paz" a Angola.

Regresso a casa

No Aeroporto de Düsseldorf, à espera de Angelina e das outras 51 crianças já recuperadas está um avião fretado pela Friedensdorf. A bordo segue também uma equipa de cinco membros da ONG, incluindo um médico.

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No avião acomodam-se ainda caixotes com material médico e a bagagem das crianças. Cada uma recebe um saco de desporto, onde, além de roupa e medicamentos, cabem pequenos presentes que elas mesmas fizeram para a família e lembranças da estadia na Alemanha – brinquedos em madeira ou saquinhos de pano feitos à mão, por exemplo.

Para casa levam também uma experiência única, diz Hannah Lohmann, porta-voz da Friedensdorf. "Neste momento, temos connosco crianças de nove países. São cristãos e muçulmanos, brancos e negros, africanos e asiáticos. Em comum têm o facto de todos terem vindo para a Alemanha para se curarem e isso cria uma ligação entre eles, que ultrapassa fronteiras e idiomas", afirma.

Já é noite quando o avião levanta voo. A equipa da ONG sabe o que tem de fazer. Durante a longa viagem organizam-se turnos para idas à casa de banho, mudar fraldas, distribuir cobertores ou verificar se todas as crianças têm os cintos de segurança apertados.

Luanda à vista

Angola Friedensdorf 20 Jahre Hilfe
Depois de dez horas de viagem, as crianças chegam finalmente ao Aeroporto de LuandaFoto: DW/M. Sampaio

A viagem decorre sem problemas. E depois de quase dez horas de voo, é hora de dizer: Luanda à vista.

À espera no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro estão dois membros da ONG alemã, que viajaram mais cedo para o país para tratar das formalidades da nova leva de doentes, e uma equipa da Kimbo Liombembwa, versão kimbundu da "Aldeia da Paz".

Criada há 13 anos, a organização parceira angolana tem equipas de voluntários por todo o país para identificar crianças com doenças que não podem ser tratadas localmente.

20 Jahre Friedensdorf in Angola
Por causa dos tratamentos, muitas crianças chegam a ficar mais de um ano sem ver os paisFoto: DW/M. Sampaio

As crianças que regressaram da Alemanha seguem depois para a sede da ONG, um pequeno espaço situado no Hospital Pediátrico Dr. David Bernardino. É aqui que são oficialmente entregues aos pais.

Durante toda a tarde, Maria Tinnefeld, assistente social da Friedensdorf, resume-lhes os tratamentos médicos realizados aos filhos e deixa-lhes também algumas recomendações. Muitas vezes é preciso continuar os exercícios de fisioterapia em casa ou trocar os sapatos ortopédicos quando estes deixarem de servir. As explicações são traduzidas por Rosalino Neto, médico angolano que dirige a Kimbo Liombembwa.

Sacrifício vale a pena

Manuel Justino António, de 12 anos, foi vítima de um atropelamento em 2012. Sofreu fraturas graves nas duas pernas, além de uma hemorragia cerebral. Ficou dois anos na Alemanha, a recuperar de uma grave inflamação na anca e na perna direita.

A mãe de Manuel diz que foi difícil separar-se do filho mais velho, mas os resultados compensam: "Quando o vi aqui fiquei muito emocionada! E ele logo que me viu também gritou: 'minha mãe!' Então abracei-o e agradeci muito", conta.

"Eu tinha mesmo fé de que ele viria melhor, porque via as crianças que voltavam melhores [da Alemanha]. Mas não contava que ele pudesse estar aqui comigo de pé, porque ele só andava em cadeira de rodas", acrescenta a mãe de Manuel.

Para o jantar, ela promete cozinhar muamba, prato típico angolano de que o filho tem saudades depois de dois anos de estadia em solo germânico.

20 Jahre Hilfe durch das Friedensdorf in Angola
Depois de dois anos na Alemanha, Manuel Justino António abraça finalmente a mãeFoto: DW/M. Sampaio

20 anos de ajuda

A capital angolana é há 20 anos um dos destinos da Friedensdorf. Foi em 1994, durante a guerra civil que durou 27 anos, que as primeiras crianças foram levadas para a Alemanha.

O conflito terminou há 12 anos, mas a colaboração continua. Se antes se tratavam ferimentos causados pela guerra, hoje as doenças são causadas pela pobreza.

Luanda Angola
Em Luanda, a pobreza cresce lado a lado com o desenvolvimento económico e o orçamento para a saúde emagrece a cada ano que passaFoto: DW/M. Sampaio

Excetuando a "excelente parceria" com a organização local e as melhorias na logística e no aeroporto, não há motivos para festejar este vigésimo aniversário, afirma o diretor da ONG alemã, Thomas Jacobs. "No fundo, nem devíamos trabalhar num país como Angola, que tem infinitas riquezas como o petróleo e diamantes, onde há tanto dinheiro", lembra.

"Se sobrasse um bocadinho de dinheiro que fosse para a população pobre e para os cuidados médicos para as crianças, a situação seria muito melhor", critica o diretor da Friedensdorf, embora confesse ter esperança que Angola comece a investir mais nos cuidados de saúde básicos nos próximos anos.

Thomas Jacobs sublinha que a Friedensdorf também procura ajudar a melhorar a infraestrutura médica no país, para que as crianças só tenham de viajar para a Alemanha em situações excecionais e possam estar perto da família.

A ONG, que se financia através de donativos e precisa de pelo menos 5 milhões de euros anuais para sobreviver, prefere manter-se longe de Governos e administrações e trabalhar com outras organizações no terreno.

Petrodólares não financiam saúde

Angola Friedensdorf 20 Jahre Hilfe
Na Kimbo Liombembwa, os novos pequenos pacientes preparam-se para partir para a AlemanhaFoto: DW/M. Sampaio

Sempre que chega à "cidade mais cara do mundo", a equipa da Friedensdorf depara-se com novos edifícios. As obras não param, mas o crescimento económico e os petrodólares de Angola não se refletem na saúde do país.

A mortalidade infantil é uma das mais altas do mundo e metade da população angolana vive abaixo do limiar da pobreza.

O Orçamento Geral do Estado para 2014 atribuiu à saúde apenas 4,3% do seu valor global – uma fatia menor do que a atribuída no ano passado (5,29%).

A parceria com a Friedensdorf vai, certamente, continuar por muitos mais anos, admite o médico angolano Rosalino Neto. "Os quadros da saúde não se formam de um dia para o outro. O Ministério da Saúde tem feito tudo e, até ver, ainda não temos quadros suficientes. Por isso pedimos a ajuda de outros países", afirma.

Novos pacientes

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Diagnósticos precisos sobre o estado de saúde das crianças angolanas são um problemaFoto: DW/M. Sampaio

No dia seguinte, depois de recolhidos os passaportes e resolvidos os últimos pormenores burocráticos, os novos pacientes chegam à Kimbo Liombembwa: 71 crianças vindas de 12 das 18 províncias de Angola. A viagem até Luanda chega a durar três dias.

Os problemas de saúde das crianças são de vários tipos: infeções ósseas, malformações congénitas, queimaduras graves, luxações, fraturas expostas, subnutrição… Algumas sofreram acidentes e não foram devidamente tratadas na altura. E os pequenos corpos escondem também outros problemas graves que não são visíveis.

Diagnósticos precisos sobre o estado de saúde das crianças angolanas são um problema, explica Kevin Dahlbruch. O diretor-adjunto da Friedensdorf viaja para Angola duas vezes por ano e conhece bem a situação no país.

"Há muitos exames que não podem ser feitos. Praticamente não se fazem radiografias às crianças que se encontram nos hospitais das províncias (fora de Luanda)", diz.

"Por isso, frequentemente temos apenas informações rudimentares", acrescenta Kevin Dahlbruch. Conta ainda que há casos de lesões diagnosticadas há, pelo menos, um ano e meio, mas como a família não tem meios, não há relatórios médicos atuais sobre o seu estado de saúde.

Alemanha, a última esperança

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O médico Tobias Bexten (centro) e a restante equipa da Friedensdorf fazem os últimos curativos antes da partidaFoto: DW/M. Sampaio

A viabilidade do tratamento e as condições clínicas das crianças são avaliadas pela Friedensdorf e pela parceira local. A Alemanha é a última esperança para muitas crianças angolanas.

Porém, na hora de escolher os pacientes, do ponto de vista médico há dois factores importantes a ter em conta, explica o médico alemão Tobias Bexten, voluntário na Friedensdorf há 15 anos.

"Um deles é: será que as crianças vão chegar vivas à Alemanha? Conseguirão sobreviver ao voo? A outra questão que se coloca é se estamos perante doenças que faz sentido tratar", explica.

Ana, uma menina de 9 anos de Luanda, é um dos casos que inspira cuidados. Não consegue andar. Está subnutrida, tem várias feridas abertas por todo o corpo e o osso do ombro direito está à vista. Mas acredita-se que Ana conseguirá sobreviver à viagem. A equipa da Friedensdorf trouxe da Alemanha uma maca especial almofadada para a ajudar a suportar as dores durante o voo.

Entre os novos doentes há também um bebé com cancro oral, que lhe devora o rosto, além de várias crianças com malformações congénitas.

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No Aeroporto de Luanda, dois autocarros transportam as crianças até ao aviãoFoto: DW/M. Sampaio

É difícil ver o estado em que muitas crianças angolanas se encontram, até para médicos mais experientes como Tobias Bexten.

"É difícil ver os ferimentos mais graves de crianças, que não têm nenhuma responsabilidade pelas inflamações que têm e que não podem ser tratadas no país", diz.

Comunicação não é problema

Já no aeroporto, fazem-se os últimos curativos antes da partida. Cada criança recebe uma pulseira de identificação com o seu nome e data de nascimento.

Durante a viagem, redobram-se os cuidados. Há alguns bebés a bordo e nem todas as crianças conseguem andar sem apoio. Algumas viajam deitadas. O seu sofrimento é bem visível. O médico Tobias Bexten tenta aliviar-lhes a dor durante a viagem.

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Uma comitiva de voluntários ajuda no transporte das crianças, que chegam à Alemanha pela madrugadaFoto: DW/M. Sampaio

A maior parte das crianças não sabe falar alemão. Ainda assim, a comunicação não é um problema, assegura Hanna Lohmann.

"Sabemos algumas palavras em português, como 'tá fixe'. E quando as crianças querem ir à casa de banho, xixi todos entendem! Além disso, as crianças aprenderam uma língua de sinais com os pais", explica a porta-voz da Friedensdorf.

A bordo estão também algumas crianças que viajam para Alemanha pela segunda vez – para continuar o tratamento ou porque surgiu um problema novo – e que servem de tradutoras. "Em duas semanas, as crianças conseguem falar muito melhor alemão do que eu português", conclui Lohmann.

Próxima missão em novembro

Os novos pacientes chegam à Alemanha de madrugada. Uma comitiva de voluntários ajuda no transporte das crianças. Os casos mais graves são imediatamente encaminhados para os hospitais. As restantes crianças seguem para a Friedensdorf, em Oberhausen.

O balanço da viagem é positivo: todos os meninos sobreviveram ao voo. Mas, menos de duas semanas após a chegada, a ONG tem de lidar com uma dura perda: a morte de duas crianças do novo grupo.

Não obstante, o ciclo da ajuda não pode parar. A próxima viagem a Angola está marcada para novembro.

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