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Cultura

"Dentro da chuva": O novo álbum de Aline Frazão

Vera Covelo Tavares
20 de setembro de 2018

A cantora angolana Aline Frazão conta com mais um disco no repertório. A DW África conversou com a artista sobre o seu novo trabalho, o futuro e a situação em Angola.

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Portrait: Aline Frazão, Sängerin aus Angola
Foto: Fradique

"Dentro da Chuva" é o mais recente trabalho da cantora angolana Aline Frazão. Um disco mais "despido", nas palavras da artista, que a fez encarar a música de outra maneira. O disco foi gravado no Rio de Janeiro, no Brasil, e celebra as influências brasileiras da artista e a forte ligação que sente com aquela cidade. É um trabalho que Aline Frazão "sabia muito bem que queria fazer".

Aline Frazão é uma mulher de causas, e percebe-se o carácter político e social em vários dos seus temas. A artista reconhece os avanços nos direitos sociais em Angola, mas pede mais e relembra que "é importante manter o alerta para não haver retrocessos nos direitos conquistados”.

DW África: Depois de "Insular" (nome do último álbum), vem "Dentro da chuva". A água parece ser o elemento comum. Está também muito presente no videoclip já revelado do primeiro tema do álbum, "Peit ta segura". Porquê esta fixação com o elemento água?

Aline Frazão (AF): Não tinha pensado nas coisas desse ponto de vista. Realmente existe aí uma coincidência que não é intencional, que, provavelmente, explica-se pelo facto de eu me influenciar por esses elementos da natureza na hora de escrever e na hora de fazer discos. Sempre escrevi muito em função do ambiente da minha cidade, de Luanda. Neste caso, "Dentro da chuva", o título surge a partir de um texto de Ruy Duarte de Carvalho, que eu musiquei, que é a segunda música do álbum, Kapiapia. No final do livrinho o Ruy Duarte de Carvalho fala de um personagem que está dentro da chuva e essa imagem, de estar dentro da chuva, e fundido com a chuva, pareceu-me muito simbólica. 

"Dentro da chuva": O novo álbum de Aline Frazão

DW África: Pela altura da gravação do disco partilhou no seu facebook: "Estar em estúdio é sempre uma jornada de enorme aprendizagem". O que aprendeu no decorrer deste disco que outros trabalhos não lhe tinham dado?

AF: Este disco, por ser um disco quase a solo, um disco que se foca muito no violão e na voz, é um disco muito despido, pela primeira vez, apesar de eu fazer muitos concertos nesse formato. Este disco obrigou-me a encarar o instrumento [violão] de outra maneira e fez com que eu encarasse também a composição das canções de outra maneira. Consequentemente, encarar-me como cantora, a minha voz, o meu instrumento, de outra maneira, porque havia, de repente, muito mais espaço. Havia um conjunto de decisões que estavam na minha mão e que fazem com o disco seja mesmo muito pessoal. Apesar de todas as parcerias que são de enorme importância para mim, é um disco que está muito focado na minha voz, em algo que vem muito de mim.

DW África: Então, é um disco que lhe deu mais confiança?

AF: Acho que isso é normal com o tempo, com a idade, com o tempo a passar. O meu primeiro álbum foi gravado em 2010, saiu em 2011. Já se passaram alguns anos, alguns palcos, e com o tempo é desejável que comecemos a viver essas experiências de outra maneira. É preciso uma certa coragem para fazer um disco a solo, porque é mesmo muito despido. As pessoas estão muito acostumadas a uma massa sónica mais completa, mais banda,  espetáculos com muita informação, de luzes, de cor, de som e os sons mais despidos são de certa forma meio anacrónicos com o nosso tempo. Essa introversão não está muito na moda.

DW África: Já gravou em Espanha, na Escócia e agora no Brasil, no Rio de Janeiro. Que país se seguirá?

AF: Acho que será Angola. Já é altura. Estou a morar aqui há dois anos quase. Tenho muita vontade de gravar o próximo disco aqui. Tenho uma fixação com essa história do lugar onde vou gravar, acho que tem uma influência muito grande na minha forma de encarar o álbum. Acredito muito que o espaço onde estamos a gravar influência o "mood", o estado de espírito. A cidade onde pisamos quando saímos do estúdio, acho que isso tudo são coisas que nos entram pela pele e saem pela expressão artística. Então, esta questão de qual é o próximo lugar é uma questão que me vem muito à cabeça.

DW África: Numa das músicas deste disco diz que quer "andar no meio do mundo sem ter casa para morar". É, portanto, uma cidadã do mundo, mas é em Luanda que acorda.  Luanda, Angola, é um regresso à nave mãe?

Insular Album Cover Aline Frazao
"Insular", álbum anterior de Aline FrazãoFoto: jazzhaus records

AF: Essa música, "Um corpo sobre o mapa", conta um pouco essa história dos meus últimos dez anos, um pouco recriada, não é absolutamente biográfica, mas inspira-se nesse roteiro todo que eu fiz de viagens e como no final parece um círculo, uma viagem circular que termina sempre no mesmo lugar, por mais que se viaje.  Decidi regressar e estou super contente por ter tomado essa decisão e de estar a morar aqui. É bom confirmar que era isso. Quando vivemos na diáspora idealizamos muito esse lugar, essa nave mãe e quando regressamos a ela nem sempre as expetativas se encontram. No meu caso, superou as expetativas e isso deixa-me muito contente. Tudo o que aprendo aqui sobre mim, sobre o mundo, sobre o meu país, as pessoas, é exatamentente aquilo que eu busco na minha vida neste momento ee isso é um grande privilégio, saber onde estar.

DW África: A par de esta exploração de lugares há também uma exploração de idomas. Neste disco expressa-se em crioulo, em português e depois há um tema em francês, "Ces petits riens". Porquê o uso da língua francesa? 

AF: É uma música que eu já cantava há muitos anos. Para este disco, lembrei-me dessa versão que eu fazia, que era uma versão meio bossa nova, meio chamba, e pensei que poderia ser também uma outra surpresa para o público: eu a cantar em francês. Sou realmente apaixonada por línguas. Acho que as línguas são música em si, adoro aprender línguas. Tenho até tentado aprender alemão, quem sabe um dia [não gravo] uma canção em alemão! Gosto de ouvir música em alemão e não é algo que está excluído, nada está excluído no que diz respeito a línguas.

DW África: E no tema "Sumaúma" é o seu lado feminista a manifestar-se?

AF: Sumaúma é uma canção de homenagem a várias mulheres que me inspiram, a mulheres da minha geração e da geração anterior, especialmente às que me inspiram no coletivo feminista do qual eu faço parte. No meio do ativismo, vamos ficando amigas e é uma canção que celebra esses laços afetivos, essa relação de admiração, de confiança, e de constante aprendizagem. Essa canção tem a ver com isso. Não só essas amigas, mas também as mulheres da minha família. É uma celebração de feminismo do ponto de vista afetivo.

Deutschland Bonn - Aline Frazao im Konzert
Aline Frazão durante concerto em Bona, na Alemanha (2016)Foto: P. Szymanski

DW África: Porquê a comparação com a árvore sumaúma?

AF: Descobri, nas minhas leituras, que a sumaúma era considerada uma árvore mãe, numa tradição ligada aos indígenas sul-americanos e é uma árvore imponentíssima. É uma metáfora, no fundo, associar essas mulheres a essa árvore mãe, essa árvore rainha, essa árvore que vê as coisas mais do alto, que vê mais à frente. É isso que essas mulheres simbolizam para mim. Essa visão alta, o acolhimento.

DW África: É sabido que usa também da música como uma forma de intervenção e crítica social. Na letra de "Manazinha (Novo Dia)" diz que o "estado daquele lugar lhe lembrou 92". É uma crítica a um desenvolvimento menos acelerado do que o que desejaria para o seu país?

AF: Desenvolvimento menos acelerado é um eufemismo. É uma música que tem uma intenção de fazer uma crítica ao estado da saúde pública em Angola, que afeta especialmente as mulheres, em especial as mulheres grávidas. Resulta do meu contato com alguns relatos de mulheres que passaram por maternidades públicas e, cada vez que oiço essas histórias, é absolutamente revoltante, e vergonhoso para o país. Um país como Angola deveria – e espero que isso aconteça brevemente – prestar especial atenção à saúde pública, ao estado dos hospitais, à mortalidade infantil. Continua a ser um dos países do mundo com taxas de mortalidade infantil mais altas.  Especialmente nesta questão de saúde pública, Angola ainda tem muito que caminhar.  [Nesse tema diz] "dizem que é um novo dia, no país que te nasceu”, mas vamos ver se realmente será um novo dia. Nessa nova fase política do país, não podemos conformar-nos só com uma mudança de cara, vamos ver se há mudanças nas políticas. Também sabemos que isso não se faz do dia para a noite mas a urgência realmente grita nos nossos ouvidos. Não há como ficar indiferente.

Aline Frazão FMM Sines 2015
Apresentação de Aline Frazão em Portugal (2015)Foto: FMM Sines

DW África:  Essa questão da saúde é, neste momento, o principal desafio para Angola ou há outros?

AF: A questão do estado social, dos direitos básicos dos cidadãos e cidadãs angolanos é a grande urgência do país há muitas décadas. A questão da saúde, educação e habitação, questões que são básicas e fundamentais para garantir a dignidade humana, acho que essas devem ser as prioridades do Estado. Quanto a desafios para os próximos anos, é que o nosso Presidente João Lourenço se possa consolidar como uma figura de mudança. Acho que essa mudança política inspirou muita esperanças em muitas pessoas. Sem dúvida que é uma mudança importante para o significado da democracia em Angola, para o significado do poder político em Angola. Já houve algumas políticas bastante significativas, mas há um longo caminho de desconstrução do poder político a percorrer que têm a ver com a hegemonia do MPLA, que tem a ver com a forma monolítica como as pessoas ainda vêm a política. E também com uma consolidação, formalização da oposição, com mais força, com mais presença, com mais inteligência, com mais compromisso. Continua a ser ainda muito débil a oposição política. Paralelamente, [é preciso] que a sociedade civil continue a ganhar espaço.