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Dívidas ocultas: Como intermediários "coisificaram" o Estado

1 de setembro de 2021

Especialista considera que aproveitamento e banalização do Estado por parte dos intermediários do caso das dívidas ocultas, em julgamento, só foi possível porque o sistema da administração pública assim o permitiu.

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Mosambik Egídio Guambe
Foto: Privat

Os chamados "bizneiros", lobistas e consultores intermediários do caso das dívidas ocultas, que está a ser julgado em Moçambique, só conseguiram "coisificar" o Estado porque o sistema da administração pública e seus gestores de alto nível assim o permitiram, destaca Egídio Guambe, especialista em administração pública. 

Enquanto o povo moçambicano se distrai com as revelações das "boladas" dos "facilitadores" e "massagistas do sistema" em tribunal, o ponto essencial perde visibilidade por hora: as responsabilidades políticas das "boladas". Em entrevista à DW África, Guambe defende uma atualização do direito administrativo para incluir novos paradigmas e conceitos, como o dos lobistas.

DW África: O caso das dívidas ocultas revela falhas do sistema de administração pública em Moçambique?

Egídio Guambe (EG): O pressuposto essencial é que há falha da parte do sistema estatal em proteger-se de qualquer [ataque]. Isso é como um 'hacker' que pode entrar no sistema e se o sistema não estiver bem protegido será a vítima. Mas também é preciso saber que os atores que estão envolvidos, que supostamente são externos, pelo menos da parte de Moçambique, não são necessariamente externos, como se diz. Na verdade, historicamente, no processo de construção das administrações africanas e não só, os atores intermediários, os 'brokers', os 'gatekeepers', são essenciais na constituição do Estado e da ação pública. Portanto, não podem, no conceito contemporâneo do Estado, ser completamente tidos como indivíduos que não são do sistema. Hoje em dia, é um pouco impossível distinguir o que é que é público do privado dada a natureza de gestão contemporânea. Os modelos atuais de gestão de administração comprometem muito esses limites tão restritos e estanques do que é público e do que é privado. Por isso mesmo, esses atores, apesar de que em termos de conceito básico parecerem distantes do Estado, na verdade estão dentro do Estado. 

Mosambik Angeklagter Teófilo Nhangumele im Gericht
Teófilo Nhangumele, um dos réus, na sala de julgamentoFoto: Romeu da Silva/DW

DW África: Então, não é crime ser lobista?

(EG): Não é a ideia de que é crime ser lobista. Na verdade, no conceito de que estou a falar, de 'gatekeepers', de 'brokers', de intermediários, eles estão dentro da administração e fazem corredores na administração. O conceito de 'broker' na administração significa que é um indivíduo que é intermediário, mas que conhece as normas administrativas. Ele conhece as privadas e administrativas e joga ao meio sem nunca contrariar. 

DW África: Voltando à minha questão, ser lobista não é um crime?

(EG): Não, não é tão pouco. Aliás, um dos acusados usou o mesmo conceito de consultor. Isso não é um problema.

DW África: Significa que o sistema da administração pública moçambicano tem que ser atualizado para incluir esta 'novidade' que já é uma realidade no país? 

(EG): O que está relativamente atrasado, no meu entender, é o direito administrativo moçambicano. Entende-se pelo julgamento que há um problema de não saber diferenciar o que é um indivíduo de intermediação e um indivíduo com posições. Isto é um problema de direito, mesmo. É preciso uma reforma do nosso sistema jurídico administrativo, mas não é para dizer que não há crime no processo. O conceito da forma como se está a atribuir o problema, a ideia de um lobista, a ideia de um consultor, não é crime. Agora, o direito tem que ser esperto para captar os erros que até os lobistas ou consultores e intermediários podem fazer. Isto é um trabalho que deve ser feito.

DW África: Houve uma "coisificação" do Estado moçambicano por parte desses "bizneiros", como se diz na gíria popular em Moçambique?

(EG): Com certeza. Há uma consciência de fazer mal ao Estado. Essa é que é a parte mais problemática. O problema não é o conceito de intermediário, o problema é a intenção de fazer mal ao Estado. Há de facto, uma ação intencional de violar, acho que com alguma consciência, as normas do Estado. Como por exemplo, do que falaram os réus, importar bens que vão beneficiar agentes do Estado, até os órgãos de soberania e o Presidente da República. É preciso olhar para o protocolo todo, como, por exemplo, de intermediar um processo que vai violar as normas, como é fazer um empréstimo que não observa as normas administrativas. A intermediação não significa um corte dos pressupostos administrativos. Ali, sim, há intenção de "coisificação" da administração.

Veja imagens da audição de Ndambi Guebuza

Nádia Issufo
Nádia Issufo Jornalista da DW África
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