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“Encerramento de fronteiras beneficia traficantes”

Andrea Grunau | Maria João Pinto
5 de novembro de 2016

É a opinião do especialista em direito penal Andreas Schloenhardt. Em entrevista à DW, o advogado apela a medidas além do policiamento e dos processos criminais para travar o tráfico de seres humanos.

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Griechenland Kos  Bootsflüchtlinge Symbolbild Schlepper
Foto: picture-alliance/dpa/Y. Kolesidis

A imigração ilegal e o tráfico de seres humanos são temas em permanente debate nas instituições europeias, numa altura em que milhares de pessoas continuam a procurar refúgio na Europa.

Andreas Schloenhardt, professor de Direito Penal na Universidade de Queensland, em Brisbane, na Austrália, e na Universidade de Viena, investiga o tema do tráfico de migrantes como consultor para o Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime e para o Conselho Europeu.

Em entrevista à DW, alerta para os riscos do encerramento de fronteiras na Europa como medida para travar o tráfico e apela à responsabilidade dos governos na "entrada controlada” de migrantes no espaço europeu.

Deutsche Welle (DW): O que é um traficante de seres humanos?

Andreas Schloenhardt (AS): É alguém que ajuda os outros a cruzar fronteiras de forma ilegal. Conhecemos as imagens que chegam da Europa, que mostram pessoas a serem transportadas em carrinhas, camiões, comboios ou mesmo a pé, através das fronteiras, e que pagam por esse transporte em terríveis condições. Acontece o mesmo na Ásia, Austrália e na América do Norte.

Mas nem sempre isto é assim tão dramático. O facto é que há muitas pessoas que, dada a sua nacionalidade e circunstâncias, estão impossibilitadas de entrar de forma legal e segura noutro país. No desespero, recorrem ao contrabando. Um representante do Alto Comissariado das Nações Unidas revelou recentemente que 95% do tráfico humano é bem sucedido, com a total satisfação de todas as partes envolvidas.

DW: Nos processos contra os traficantes de seres humanos, muitos dos acusados afirmam que queriam apenas ajudar. O que distingue o tráfico de seres humanos do apoio à fuga ou à migração?

AS: Há um protocolo da ONU, assinado por mais de 140 países, que diz que o tráfico ou contrabando é apenas punível quando a intenção é enriquecer. Isto foi definido a nível mundial em 1990, mas muitos países desviam-se deste protocolo. Como muitas vezes é difícil provar que houve dinheiro envolvido, põe-se de parte este princípio de comprovar o enriquecimento. Por isso, qualquer tipo de ajuda à entrada ilegal num país ou ao trânsito ilegal é punível. Isto também se aplica à Alemanha.

Em 2015, muitos refugiados sérvios, eslovenos e húngaros na Áustria partiram para a Alemanha. Na Áustria, esta ajuda à migração ilegal não é punível, ao contrário do que acontece na Alemanha. Actualmente, estão a decorrer processos criminais. Comparando a legislação do tráfico nos 47 países do Conselho da Europa, encontram-se 47 leis completamente diferentes.

A questão é como se deve avaliar uma ajuda "gratuita” à entrada num país. Pode tratar-se de um bom samaritano, que salva um refugiado que foge de um país onde é perseguido ou onde não tem condições para viver. Na Alemanha dividida, até 1989 muitos ajudaram à fuga de pessoas da Alemanha do Leste para a Alemanha Ocidental, muitas vezes mediante o pagamento de uma taxa. O Supremo Tribunal classifica estes "contratos de tráfico” como "não imorais”. Esta ajuda à fuga não foi punida e foi bem recebida pelas autoridades da Alemanha Ocidental.

Australien - Prof. Dr. Andreas Schloenhardt - Professor für Strafrecht an der University of Queensland
Andreas Schloenhardt, especialista em Direito Penal Foto: Privat

DW: Há também motivações políticas por trás destas atividades?

AS: Claramente. Durante o período nazi, os judeus e outras minorias perseguidas foram também retirados do país – muitas vezes através de métodos muito perigosos e caros.

O ambiente mudou nos anos 90, com a abertura das fronteiras do leste. Não foram apenas os húngaros, búlgaros e romenos a migrar através da Europa do Leste. Também os migrantes do Médio Oriente, África e Ásia puderam viajar por terra até à Europa Ocidental. Os problemas que há 25 anos se tentaram resolver com tratados internacionais continuam a ser os mesmos: a Áustria, que se vê como o grande destino da migração da Europa de Leste, e a Itália, que está muito preocupada com as pessoas que tentam chegar ao país através do Mediterrâneo. Muitos perdem a vida.

DW: A União Europeia adotou um plano de acção contra o tráfico de migrantes. O que pensa disto?

AS: Isto acontece muito em Bruxelas: medidas que reforçam a imagem da "Fortaleza Europa” – como mais controlos ou barreiras nas fronteiras – não só para controlar melhor as fronteiras externas da União Europeia mas também para as bloquear parcialmente. Ao mesmo tempo, estão em prática medidas relacionadas com o resgate de migrantes no Mediterrâneo.

Há diferentes modelos para lidar com a pressão dos fluxos migratórios. O acordo com a Turquia é uma das possibilidades de combate ao tráfico. Há também os "hotspots” – os centros de acolhimento nas fronteiras externas da União Europeia. Todos os modelos levantam dúvidas.

Em última instância, o Estado tem de assumir a tarefa. Na ONU, muitos dizem que a elevada dimensão do tráfico humano e o número de processos criminais apontam para um fracasso: o Estado falhou na criação de opções de migração controladas.

Em 2015, os Estados ajudaram a transportar os refugiados na Rota dos Balcãs. Um relatório da polícia alemã fala em "quotas de tráfico significativamente mais baixas" nas entradas não autorizadas...e outras polícias chegaram a esta conclusão. Quando é possível entrar legalmente no país, não há necessidade de existir tráfico. Em 2015, vários países criaram esta possibilidade: a Macedónia disponibilizou comboios, a Áustria autocarros. Isto garantiu segurança na entrada e na passagem e anulou o propósito dos traficantes.

No entanto, desde que as primeiras fronteiras foram encerradas, no Outono de 2015, o problema foi transferido. Um ano mais tarde, as pessoas chegam por outras vias. Inicialmente era a Rota dos Balcãs. Agora, chegam novamente em grandes números pelo Mediterrâneo. Os migrantes não podem fazer estes caminhos sozinhos. Estão cada vez mais dependentes dos traficantes. O encerramento das rotas tornou o negócio do tráfico muito lucrativo. O encerramento beneficiou principalmente os traficantes.

DW: Quem são os traficantes?

Griechenland Flüchtlinge auf dem Weg zurück nach Syrien
Centro de detenção para migrantes e refugiados perto da fronteira entre a Grécia e a TurquiaFoto: Getty Images/AFP/S. Mitrolidis

AS: A maioria das pessoas detidas e condenadas vem de países de trânsito como a Sérvia, a Roménia e a Hungria. Como muitas pessoas querem viajar, oferece-se transporte em troca de pagamento - muitas vezes, somas avultadas. Para alguém que não ganha muito, esta é uma oportunidade de fazer dinheiro rapidamente.

São muitas vezes crimes ocasionais. Raramente estes agentes do tráfico trabalham em estruturas criminosas transnacionais. Os traficantes são, na maioria, pessoas dos países de origem - afegãos, sírios e paquistaneses – que, em muitos casos, foram também transportados ilegalmente e agora querem trazer os seus familiares e outras pessoas, tornando-se, desta forma, também traficantes.

Sem querer desculpar a sua actividade, este perfil dos traficantes levanta uma questão: as nossas medidas, como a construção de barreiras e o encerramento de fronteiras, são a melhor forma de prevenir isto? Certamente que não.

Há traficantes que arriscam as vidas das pessoas que transportam pelo lucro. Pessoas morrem asfixiadas em camiões sobrelotados, milhares afogam-se porque os barcos são totalmente inadequados e naufragam no Mediterrâneo. Como podemos combater este negócio criminoso?

Em primeiro lugar, é necessário criar incentivos para prevenir que as pessoas sejam traficadas. Os países de origem e de trânsito têm de permitir que os pedidos de asilo sejam efectuados e é preciso também permitir a migração laboral numa maior escala.

Aquilo que os traficantes oferecem tem de ser considerado caro, complexo e perigoso. Precisamos de alternativas realistas. Isto não significa que vamos abrir as portas e dizer "deixamos passar toda a gente", pelo contrário.

É essencial que o Estado assuma a responsabilidade pela entrada controlada de pessoas que o país quer proteger e das quais precisa para o mercado de trabalho. Nos países da Europa Central, as taxas de natalidade estão em queda. Há necessidade de haver migração.