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ONG critica plantações florestais em Moçambique

31 de outubro de 2018

Centenas de milhares de hectares de terra foram concessionados em Moçambique para plantações florestais. Uma escolha errada, defende o ambientalista Jeremias Vunjanhe, da Acção Académica para o Desenvolvimento (ADECRU).

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Grandes áreas da África do Sul já são ocupadas por monoculturas, como esta, de eucaliptos: ambientalistas temem o mesmo em MoçambiqueFoto: picture-alliance/blickwinkel/J. Hauke

DW África: Em Moçambique, várias centenas de milhares de hectares foram concedidos ou concessionados para a plantação de florestas. Qual é o impacto destes projetos em Moçambique?

Jeremias Vunjanhe (JV): É um impacto devastador e em vários sentidos. Por exemplo, no âmbito social constatámos que há muitas famílias camponesas que estão a ser expropriadas das suas terras, nomeadamente na província de Nampula, com o avanço das plantações de eucalipto da empresa Green Resources. Nas províncias da Zambézia e Manica, também constatámos que, com o avanço das plantações florestais da empresa Portucel [também conhecida como The Navigator Company], há famílias que estão a perder extensas terras.

Também há famílias que estão a denunciar o incumprimento de várias promessas, como a construção de escolas e a construção de hospitais e de estradas que fizeram parte do acordo de cedência de terras.

Por outro lado, também há denúncias de escassez de água por causa da seca que está a afetar aquelas regiões. E muitos rios sazonais que conseguiram reter uma água significativa para o consumo estão a secar muito rapidamente.

Por outro lado, no domínio da legislação, temos denúncias de incumprimento da própria lei. Por exemplo, os projetos avançam sem observância mínima do processo de consulta comunitária, em que as consultas são manipuladas a favor dos investidores. Também há muita corrupção por parte dos líderes comunitários e de alguns técnicos dos serviços provinciais de geografia e de cadastro.

Há muitas denúncias desta natureza que já têm implicações, inclusive na segurança alimentar. Muitos camponeses estão a passar fome porque estão a perder as terras férteis que eram usadas para a produção agrícola. Estão a ser expulsos. Naturalmente que há redução da produção e da produtividade nessas áreas, que são muitas, como se pode notar: a Portucel tem 356 mil hectares e a Green Resources tem mais de 400 mil hectares nas três províncias onde está a operar. 

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Para além dos eucaliptos, plantações de pinheiros, como esta na província do Niassa, são comuns. Ambas as espécies crescem muito depressa.Foto: DW/Glória Sousa

DW África: As estatísticas dizem que Moçambique tem vastas zonas de áreas próprias para a agricultura e plantações florestais, que não estão a ser usadas. Isto é verdade?

JV: Não é verdade, embora as estatísticas assim o indiquem. Mas nós sabemos que, em Moçambique, 60% ou 70% da população vive na zona rural. 90% dessa população pratica a agricultura e fornece 90% dos alimentos.

Estas pessoas praticam a agricultura itinerante, o que quer dizer que, muitas das áreas que aparentemente se dizem que não estão a ser usadas, são áreas que já foram usadas pelos camponeses há três ou quatro anos e que estão previstas para uma posterior utilização.

Nós sabemos que, em Moçambique, mas também noutros países africanos, há famílias alargadas. Essas famílias estão a crescer e precisam de cada vez mais espaço.

Claro que as estatísticas que há são estatísticas oficiais, baseadas na posse do título do direito de uso e aproveitamento da terra (DUAT) e não necessariamente na ocupação por boa fé ou na ocupação à base do direito costumeiro.

Portanto, as estatísticas desvirtuam a realidade, e isso faz com que o Governo tenha a ilusão de que há grandes quantidades de terra. A consequência disso é que há muitos conflitos de terra em Moçambique. Se existissem grandes quantidades de terra livre, como se diz ou como as estatísticas oficiais indicam, eventualmente teríamos já muito poucos conflitos de terra.

Então, por isso é que temos chamado atenção ao Governo para que respeite a lei, porque a lei já diz claramente que as pessoas que ocupam por boa fé e pelo direito costumeiro têm um direito de permanência.

É preciso também considerar esses números dentro das estatísticas. Isso evitaria em grande medida a existência de famílias sem terra e os conflitos permanentes de terra, que existem inclusive com confrontos.

Já sabemos que, num passado recente, por exemplo, na província de Niassa, os camponeses tiveram que queimar as plantações florestais para conseguirem praticar agricultura, inclusive para a sua subsistência. 

Plantações florestais em Moçambique: bênção ou pesadelo?

DW África: Na província de KwaZulu-Natal, na África do Sul, há grandes zonas dominadas por eucaliptos ou plantações de pinheiros. Isso é um cenário que vamos viver em Moçambique? Será que províncias inteiras como Manica serão dominadas por monoculturas muito pobres em termos de biodiversidade, com pouco espaço para outras espécies de árvores, outras plantas ou animais, como pássaros?

JV: Com certeza! Se o grito e a posição contestatária das populações que vivem nessas regiões não forem escutados e se o Governo também continuar a não escutar a voz de várias organizações que trabalham com estas comunidades sobre a necessidade de impedir o avanço das plantações florestais, seguramente que teremos um cenário igual.

Até será muito mais dramático, porque estamos a considerar toda a região centro e norte de Moçambique. Em termos de províncias, estamos a considerar Manica, Sofala, Zambézia, Nampula, Niassa e uma parte de Cabo Delgado.

E é nessas regiões que se diz que há mais de 70% do potencial de desenvolvimento do país, mas, ao mesmo tempo, também há potencial em termos de biodiversidade. Se nada for feito por parte do Governo, seguramente teremos várias extensões de terras ocupadas pelos eucaliptos, com consequências nefastas para a biodiversidade e segurança alimentar.

Porque essas províncias também são as províncias mais produtoras. Por exemplo, a Zambézia e Manica são as duas províncias que mais produzem em Moçambique. Estamos a caminhar para esse risco, sobretudo com um plano do Governo de Moçambique que pretende aumentar a área atual de 600 mil hectares para três mil milhões de hectares de terra só destinados para eucaliptos.

É um cenário previsível. Mas eu tenho esperança, enquanto ativista que trabalha com as comunidades, que isso não vai acontecer, porque haverá muita resistência, conforme já está a acontecer.

Sabemos que a população moçambicana sabe muito bem que o próprio Governo, que está a avançar muitas plantações, foi o Governo que herdou uma herança importante de libertação da terra. Então, eu creio que, ainda que o Governo tencione avançar com as plantações, seguramente terá uma resposta mais adequada. Por exemplo, igual àquela que está a acontecer neste momento com o ProSavana [um projeto de desenvolvimento da agricultura no norte de Moçambique], que não consegue avançar.

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Até agora, em muitas áreas, como nesta na província de Manica, ainda se encontram muitas espécies de plantas e animaisFoto: DW/J.Beck

DW África: Os defensores desses projetos sempre citam a criação de emprego. Haverá muito emprego criado por estas plantações florestais? Por exemplo, haverá produção de celulose e de papel em Moçambique ou será principalmente matéria-prima destinada à exportação, em que a mais-valia depois será feita pela transformação do produto em outros países, como acontece atualmente no caso do carvão ou de outras matérias-primas?

JV: Nós sabemos que a retórica do emprego é uma retórica presente, que é usada pelo Governo de Moçambique não só na questão das plantações mas também noutros projetos como a extração de carvão mineral e do gás. Mas a verdade tem mostrado que há muito pouco emprego que consegue abarcar a maior parte da população moçambicana, sobretudo da população rural.

No caso das plantações florestais, nós sabemos que, excetuando a Portucel, que tem essa pretensão de estabelecer uma fábrica, todas as outras empresas pretendem exportar a madeira para alimentar a indústria fora do país.

O emprego que existe [no setor] é muito limitado, porque tem sido entre 300 e 400 trabalhadores. Esse emprego ainda é muito sazonal e só acontece na primeira fase de implantação dos eucaliptos, ou seja, para desbravar a terra, para o derrube das espécies nativas e depois para a sementeira. Logo que a sementeira terminar, todos esses trabalhadores voltam para o desemprego.

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Jeremias Vunjanhe em BerlimFoto: DW/J. Beck

Mesmo naqueles que são empregues, temos casos em que os trabalhadores quase estão numa situação de escravatura moderna. Isso é um alerta importante, porque, este ano, os dados publicados indicam que Moçambique está no terceiro lugar dos países lusófonos, com 150 mil pessoas nessa situação [de escravatura moderna].

Também constatamos que há crianças que trabalham nesses campos, que desistem da escola para tentar uma sorte de emprego nessas plantações. Estes também são outros problemas que estão inerentes às plantações. O que estamos a dizer é que a promessa de emprego é uma promessa e uma retórica que facilmente esbarra na realidade concreta das comunidades.

Por isso, temos insistido que é preciso haver uma mudança de abordagem no tipo dos projetos que se realizam, não somente de plantações, mas também nos outros tipos de projetos, para permitir que, de facto, se gera emprego e se desenvolve o país, para que haja uma indústria de transformação dentro do território moçambicano e para que Moçambique não apenas seja usado como fonte de matéria-prima e como um corredor de escoamento dessas matérias-primas e de outros tipos de "commodities".

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Plantação entre as localidades de Lichinga e Metangula, na província do Niassa.Foto: DW/J. Beck

DW África: Diz que assistiram a situações de trabalho de escravidão. Há casos concretos que pode citar na indústria destas plantações florestais?

JV: Um caso muito concreto é por exemplo Manica, onde estamos a acompanhar a Portucel. Já visitamos vários casos, inclusive de mulheres que trabalham a partir das 6h até às 22h, porque trabalham em sistema de meta. É uma meta que é estabelecida e, sem que se conclua aquela meta, não se pode abandonar [o local de trabalho] e não se recebe o seu ordenado.

Por outro lado, também constatamos que as pessoas que trabalham nessas empresas têm de fornecer o seu equipamento de trabalho. Portanto, elas próprias têm que procurar o equipamento para trabalhar. Não têm condições mínimas de proteção, e também estão a expostas a vários riscos.

Mas também há outros casos nas províncias de Niassa e Nampula, em que as próprias comunidades também já denunciaram a precariedade das condições de trabalho e o não pagamento dos salários devidos. Também constatámos que há trabalhadores que não têm contratos e aqueles que trabalham recebem muito abaixo do salário mínimo determinado para o setor. Quando há uma paralisação, como no caso no caso da Green Resources, os trabalhadores simplesmente não foram indemnizados.

Então, temos muitos casos e infelizmente, ao nível interno, as denúncias que temos feito e que as próprias populações têm feito não têm sido levadas a sério pelo Ministério do Trabalho ao nível dessas províncias.

Johannes Beck
Johannes Beck Chefe de redação da DW África
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