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História

Linha de Sena: 20 anos depois da paz em Moçambique

Barroso,Marta1 de outubro de 2012

Ao fim de mais de 20 anos, a Linha de Sena foi reaberta por completo a passageiros em 2012. O percurso foi destruído durante a guerra civil, impedindo as pessoas de se movimentarem. Agora, estão novamente unidas.

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Quinta-feira é dia cheio na estação de Moatize, na província de Tete. É à quinta que daqui parte o comboio com destino à cidade da Beira. A plataforma exibe ainda dezenas de padrões coloridos. São as capulanas que cobrem quem espera, os panos moçambicanos que servem de saia, de vestido e lenço de cabeça às mulheres, de cadeira de transporte aos bebés e de manta aos viajantes.

Vieram das redondezas e vieram de longe, o bilhete já há muito têm na mão. Esperam pacientemente, afinal já cá estão e o comboio também. Se o perdessem, teriam de esperar uma semana. Mas em Moatize não há quem se atrase.

São seis da manhã, o comboio apita pela primeira vez e os passageiros sabem que agora podem entrar. Instala-se o alvoroço, gente corre, filho às costas, carga na mão, molhos de galinhas na outra, farnel na cabeça. Tudo equilibrado, nada treme. A calma multidão de há pouco entra agora por todos os poros do comboio, pelas portas, pelas janelas, carga encolhida pelas frinchas, filhos no ar, galinhas também. O que importa antes de mais é arranjar lugar: há mais passageiros que assentos e a viagem é longa.

Hoje é dia de festa

Esperaram mais de 20 anos pela reabertura desta linha, se só hoje têm a oportunidade de se estrear no comboio, então é hoje dia de festa. E, por isso, os passageiros da carruagem número 3, um vagão da terceira classe, vão todos aprumados. Na verdade, os colarinhos poídos, as calças de fazenda remendadas, os blazers que de pretos acinzentaram caducaram faz tempo. Mas são estas as roupas que têm reservadas para as ocasiões importantes. Porque aqui vão eles, finalmente, pela linha de Sena.

Os mais velhos conhecem-na do tempo antes da guerra civil que a destruiu. E enquanto os embondeiros passam lá fora, Alberto Mugente e Carlos Caledzera já estão no passado. Falam dos ataques da RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana, aos comboios que por aqui passavam durante a guerra, "da Beira para Sena havia ataques, de Sena para Moatize havia ataques", lembra-se Caledzera. "Atos de sabotagem à economia", remata Mugente.

Eram 50 ou 60 vagões em cinzas, atirados para as bermas

Os cobradores passam, o comboio avança: Mecondeca, Mecito, Chueza, Doa.

Quem por aqui passou na altura conta que tudo ficou imprestável. Nos últimos anos de guerra civil, era o movimento rebelde RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana, que dominava os distritos desta região no centro de Moçambique, por onde passa a Linha de Sena. E por aqui os rebeldes espalharam a destruição. Foi esse um dos meios que encontraram para enfraquecer o governo da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique. Ao longo da Linha de Sena, conta-se, viam-se centenas de metros de linha dobrados e atirados para as bermas. Viam-se 50, 60 vagões seguidos, todos eles em cinzas, atirados para as bermas também.

Antes de a linha ser definitivamente encerrada, Alberto Mugente trabalhava nos caminhos de ferro. O homem, que hoje tem sessenta e tal anos, acompanhou a destruição. "Os poucos que então ousavam viajar de comboio", diz, "não pagavam bilhete. Em vez disso, tinham de sair sempre que a linha estava danificada e ajudar a compor os troços destruídos".

A exploração de carvão voltou, a linha também

A Linha de Sena esteve sempre ligada sobretudo às minas de carvão e às plantações de açúcar da região. O objetivo era facilitar a escoamento dos recursos do interior de Moçambique até ao porto da Beira no Oceano Índico, de onde partiam para o mundo.

Quando a guerra civil terminou em 1992, a reabilitação da linha exigia começar do zero: desminar a zona, desmatar o percurso e desmontar os restos da velha linha, preparar a plataforma para a nova e montá-la. Passaram muitos anos depois de instalada a paz sem grandes avanços. O investimento só ganhou outra dinâmica com o início da exploração de carvão na região de Tete por grandes multinacionais como a brasileira Vale e a anglo-australiana Rio Tinto.

Grande parte do dinheiro para a reconstrução veio do Banco Mundial, as obras foram feitas por troços e acabaram por tomar muito mais tempo que o previsto, porque o consórcio indiano responsável não cumpriu diversos prazos.

Os mais velhos dizem que dantes havia um comboio por dia a circular em cada direção. Hoje, o único que se cruza com este é da empresa mineira Rio Tinto que foi ao porto da Beira levar carvão para exportar e agora está de regresso às minas de Moatize.

Nem só o carvão percorre agora a Linha de Sena

Mas a Linha de Sena não permite apenas escoar produtos. A linha une gentes e permite-lhes também a elas circular. Para os passageiros da carruagem número 3, viajar - hoje, de comboio - é ter a liberdade de movimento que durante a guerra lhes foi roubada.

Carlos Caledzera também lutou, mas não na guerra civil. Foi antes, quando os moçambicanos lutaram pela independência do poder colonial português. E como antigo combatente - agora reformado de guerra, por assim dizer - foi de Mutarara a Moatize receber o dinheiro que lhe é devido de pensão. É que "em Mutarara não há banco".

O comboio passa por Zemira, Singal, Chauundira até chegar a Mutarara.

Aqui desce sempre uma boa parte dos passageiros. Carlos Caledzera também sai, Maria Viagem senta-se no seu lugar. Veio a Mutarara em negócio e está agora de regresso à Beira. Normalmente vem cá comprar tomate, às vezes cabrito ou galinhas para vender na Beira. Desta vez, foi vender roupas de bebé, mas agora só traz cana de açúcar.

Dona Ana, a ponte que liga Tete, Sofala e suas gentes

O maquinista prepara-se para atravessar a ponte Dona Ana. 3.750 metros de metal e betão armado estendem-se sobre o rio Zambeze. A província de Tete despede-se pela janela, a Vila de Sena é a próxima paragem e fica já na província de Sofala.

A construção da ponte nos anos 1930 possibilitou as expansões da linha à província de Tete e ao Malawi, na altura Niassalândia, uma colónia inglesa. Até lá, o percurso dos comboios que chegavam da Beira terminava aqui, na localidade de Sena.

Durante a guerra civil, a ponte sofreu com as ações de sabotagem da RENAMO e teve de fechar. Nos anos 1990 foi reaberta, mas convertida em ponte rodoviária. Hoje, já não são os carros, mas de novo os comboios que aqui atravessam o Zambeze.

Os cobradores que abusam da sua autoridade nos vagões da terceira classe

Com a nova enchente de passageiros em Sena, os cobradores estão de volta. Desta vez, trazem um rapaz dos seus 20 anos, em algemas. O jovem vem quase de rastos, aos tropeços, calcando os doentes deitados no chão. "Em Moçambique é assim", comenta João Melesse quando vê o rapaz ser espancado pelos funcionários do caminho de ferro. Ali, à frente de todos, por nada, segundo a vítima: em Moatize não tinha pago o valor correspondente ao seu percurso, mas acabava de dar o restante.

Os cobradores batem com bastões, o rapaz, no chão, grita. Os homens querem lançá-lo do comboio em andamento, mas os passageiros protestam, assobiam, gritam também, sabendo que lhes pode caber o mesmo destino. Os cobradores desistem, fazem-no descer do comboio na próxima paragem.

Mais tarde, a cena domina as conversas na carruagem. Saiquina Francisco, uma estudante, e Manuel Lampe, que pagou o seu bilhete com o dinheiro que fez a vender cigarros no comboio desde Moatize, são jovens como aquele. Nenhum dos dois entende e nenhum dos dois suporta estes maus tratos por parte dos cobradores. "Lançam constantemente pessoas do comboio", dizem, "é um crime".

As horas perdem-se pelo caminho

Inharuca, Magagade, Murraça, Caia já ficaram para trás. Em todas as estações há vendedores, alguns crianças ainda, com frango assado, milho cozido e bananas maduras.

Do lado de fora, tentam fazer chegar os produtos até aos passageiros nas janelas. Durante a viagem não há uma hora de comer, há, antes, estações onde se come. Quem já acabou o farnel que preparou em casa, precisa de entreter as mãos e o estômago. E pelas janelas passam-se ainda os últimos refrescos, a última água, sacos de amendoins, bolachas.

As horas perderam-se pelo caminho, a noite caiu lá fora. O comboio passa por Inhaminga, Mazamba, Condue, Muanza.

À primeira luz do dia seguinte, Alberto António muda-se para o lado de Maria Viagem, a negociante. Durante a guerra, António viu o que se passou ao longo da linha depois de sabotada pela RENAMO. De linha de comboio, Sena passou a fonte de recurso para quem aqui vivia: as bitolas foram usadas como combustível lenhoso, da chapa das carruagens moldaram-se panelas, os carris foram vendidos.

Como muitos outros, António acabou por fugir para o Malawi, regressou em 1994, dois anos depois de assinado o Acordo de Roma entre o governo da FRELIMO e a RENAMO. Mas as condições dos primeiros tempos de paz no seu país continuavam duras. "Roupa era chato, de comer era chato. Agora tem tudo."

Alberto António vai até à estação final: a cidade da Beira. Sempre que lá vai fica entusiasmado, lá "tem muita coisa. Cresceu muito, é uma grande cidade já, muito bonita - rotundas, farmácias, empresas - muito bonita!"

A razão que o traz à Beira desta vez não é feliz, está a caminho de um funeral. Mas talvez ainda encontre um trabalho ocasional que lhê o dinheiro para regressar daqui a uns dias.

Ao fim de 26 horas e cerca de 600 km de caminho, os últimos passageiros descem na Beira com António. Filhos às costas, carga na mão, molhos de galinhas na outra.

Autora: Marta Barroso
Edição: Johannes Beck