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Ópera e tecnologia em Berlim

15 de julho de 2012

O criador de "Esperando Godot" declaradamente detestava o páthos do palco lírico – do mesmo modo que o compositor Morton Feldman. Mas juntos criaram "Neither", apresentada pelo grupo Phase7 como "ópera em áudio 3D".

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Foto: Vitoscha Königs

[...]
passos não ouvidos só soam
até finalmente parar de vez, ausente de vez
de si mesmo e do outro
então nenhum som
então luz suavemente desapagando sobre aquele despercebido
nem
casa indizível

Estas são, em tradução livre, as últimas das 87 palavras do "libreto" de Neither (Nem), ópera de Morton Feldman sobre texto de Samuel Beckett.

Difícil imaginar um duo menos sintonizado com o gênero lírico do que o compositor norte-americano e o dramaturgo e poeta irlandês. Dois mestres do understatement, das repetições obsessivas, minimalistas, titãs do não-narrativo, não-discursivo, do não-retórico, dos silêncios.

O encontro se deu em Berlim, em 1976. Feldman recebera da Ópera de Roma a encomenda para uma obra de teatro-música, e buscava um libretista. Beckett encenava no Schiller Theater seus breves e lacônicos That time e Footfalls.

"Algo que paira"

Vindo da luz do sol, o visitante terrivelmente míope tropeçou no escuro do palco, após apertar a mão de Beckett, e o convidou para almoçar. Segundo o próprio compositor, assim transcorreu o diálogo com o famosamente tímido autor de Esperando Godot:

– Sr. Feldman, eu não suporto ópera.
– Não posso levá-lo a mal por isso.
– Também não gosto quando minhas palavras são postas em música.
– Concordo plenamente com o senhor. Na verdade, só raramente uso textos nas minhas composições. Escrevi algumas peças para canto que são sem palavras.
– Então, o que é que o senhor quer de mim?
– Não tenho a menor ideia.

Samuel Beckett
Samuel BeckettFoto: dpa

Mais tarde, o músico conseguiu ser mais "específico", pedindo: "A quintessência. Algo que acaba de pairar".

Seja como for, os dois artistas parecem ter se entendido, pois, algumas semanas mais tarde, Feldman recebia um cartão postal contendo exatamente 87 palavras, que transformou numa anti-ópera para soprano e grande orquestra, com 50 minutos de duração.

Fachada do Radialsystem V
Fachada do Radialsystem V, em BerlimFoto: Sebastian Bolesch

Áudio 3D

Em 2012, a rede de arte multimídia berlinense Phase7 levou um passo mais adiante esse jogo de ausências e virtualidades. Há já algum tempo, o compositor Christian Steinhäuser vinha propondo ao diretor Sven Sören Beyer a realização eletrônica de Neither. Mas o que justificaria uma versão virtual da obra? Em que ela poderia ser "melhor" do que o original, com músicos ao vivo?

O impulso definitivo para a criação de uma "ópera em áudio 3D" veio através do contato do grupo com a técnica de espacialização sonora chamada "síntese de campo de ondas" ou WFS (wave field synthesis ou wellenfeldsynthese). Seu princípio teórico é conhecido desde 1988, e em 2004 o Instituto Fraunhofer lançou o software IOSONO, que viabiliza a aplicação prática.

Ao contrário dos sistemas convencionais estéreo ou surround, em que o posicionamento da música e ruídos no espaço é relativo à posição do ouvinte, no WFS eles recebem uma localização precisa, como se fossem objetos concretos, tridimensionais.

Para tal, o sistema emprega uma faixa de caixas de som circundando todo o espaço – "apenas" 64, nas apresentações em Berlim, mas esse número pode chegar a até 400. Depois que a posição de cada caixa é medida a laser e computada, o IOSONO, passa a controlar seu volume e demais parâmetros, garantindo a precisão do holograma auditivo.

Beckett, motor imóvel

A sala de espetáculos do Radialsystem V,  em Berlim, se encontra debilmente iluminada de azul, envolvida por uma neblina densa, a visibilidade limitada a uns poucos metros. Os assentos se distribuem em torno de um minipalco elevado, encimado por painéis de LED, bem no centro da sala. Sentada num dos cantos, toda de branco, a cantora norueguesa Eir Inderhaug espera, inerte.

Imediatamente após o blecaute, a música de Morton Feldman se anuncia em portentosos acordes dissonantes. O som é inegavelmente de instrumentos sampleados, artificial, mas ainda orgânico. Inderhaug ganha o centro do palco. Projeções de luz dão vida a seu figurino, pontos luminosos em movimento, fluidos em circulação. Pouco a pouco, a atividade visual se propaga para os painéis LED.

Áudio 3D e diálogo de mídias sobre ópera de Morton Feldman
Áudio 3D e diálogo de mídias sobre ópera de Morton FeldmanFoto: Vitoscha Königs

A dificuldade da linha vocal é espantosa. Concentradas no registro mais agudo, as notas são articuladas como golpes de punhal – suaves ou brutais, mas sem nunca formar um arco melódico. Com as vogais repetidas insistentemente, o sentido se dilui, a compreensão fica quase impossível. Distendido, desmembrado, o texto de Samuel Beckett é o "motor imóvel" desse organismo multimídia, sua fonte ausente.

Espaço para artes e ideias

O diálogo musical-visual se adensa. Voz humana, projeções, sons sintéticos, feixes  luminosos quase palpáveis comentam o tema beckettiano, num contraponto de mídias. Nos momentos mais intensos, o sistema IOSONO mostra do que é capaz, lança os objetos sonoros pelo espaço, os faz circular, surpreendendo o espectador por todos os lados.

Entretanto, inevitavelmente, a atividade se congela pouco a pouco, até a extinção brusca. Som e luz retornaram ao lugar de onde vieram: à treva, ao silêncio – o reino do Nem.

Através dessa maratona de quase uma hora, Eir Inderhaug mantém um timbre cristalino, só demonstrando algum esforço perto do fim. Mais tarde, ela confessará: "Amo e odeio Neither", justamente pelos desafios inumanos que apresenta.

A norueguesa já é um nome na cena lírica escandinava, e – quando não está participando de projetos experimentais – brilha em papéis como a Rainha da Noite e a Pamina de Mozart, ou as heroínas de Händel.

O centro Radialsystem V existe há seis anos como "espaço para artes e ideias em Berlim", abrigando, entre outros, a companhia da coreógrafa Sasha Watz. Completando a noite, Christian Steinhäuser estreou a composição própria Delusions II, um jogo de ilusões auditivas com 15 minutos de duração. Após as apresentações em meados de julho na capital alemã, o Phase7 leva o programa duplo para o New Vision Arts Festival, em Hong Kong.

Soprano Eir Inderhaug
Soprano Eir InderhaugFoto: Vitoscha Königs

Autor: Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela