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Ditadura militar

9 de dezembro de 2011

Em entrevista à Deutsche Welle, o jornalista Esteban Cuya, especialista do Centro de Direitos Humanos de Nurembergue, explica a ambivalência da posição da Alemanha diante das ditaduras do Cone Sul.

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Esteban Cuya, Coalicion contra la Impunidad, Nürnberg
Jornalista Esteban CuyaFoto: Esteban Cuya/DW

Deusche Welle: As relações entre a Alemanha e a América do Sul têm uma história de quase dois séculos e passaram tanto por momentos brilhantes como por outros mais nebulosos. Como se posicionavam os dois Estados alemães, a República Federal da Alemanha (RFA), capitalista, e a República Democrática Alemã (RDA), comunista, diante dos golpes de Estado que ocorreram entre 1954 e 1976?

Esteban Cuya: Em relação à ditadura militar que tomou o poder na Argentina a partir de março de 1976, a relação da Alemanha Ocidental com ela foi de uma simpatia explícita, considerando-a um aliado na defesa da sociedade ocidental e cristã, capitalista, frente à ameaça da União Soviética, comunista.

Paradoxalmente, a Alemanha Oriental não diferiu da Alemanha Ocidental em sua relação com a ditadura militar Argentina. Aqui predominou a lógica dos jogos de poder em um mundo bipolar. Quando o então presidente dos EUA, Jimmy Carter, decretou em 1977 um embargo de armas contra a ditadura Argentina, criticando-a duramente, a Argentina encontrou apoio na União Soviética, que não demorou a se alinhar ao seu lado. Era a lógica "o inimigo do meu inimigo é meu amigo". A União Soviética muitas vezes impediu sanções da ONU contra a Argentina por suas violações sistemáticas dos direitos humanos.

Entre as 30 mil vítimas da Guerra Suja na Argentina também se encontrava uma centena de cidadãos alemães e de origem alemã. Tanto EUA quanto outros países europeus exerceram uma maciça pressão diplomática para salvar a muitos de seus cidadãos que foram vítimas da repressão na Argentina. Qual foi a reação da RFA durante o governo de coalizão entre social-democratas e liberais naquele momento?

São conhecidos casos de cidadãos italianos, irlandeses e britânicos que foram resgatados das prisões dos militares argentinos entre 1976 e 1983, graças a intervenções rápidas e enérgicas de seus governos.

Lamentavelmente, as autoridades da Alemanha Ocidental não assumiram uma posição clara de defesa de seus cidadãos frente às arbitrariedades e violações dos direitos humanos por parte da ditadura militar argentina.

É lamentável que o embaixador alemão Hansjörg Kastl, depois dos milhares de casos de desaparecimentos na Argentina difundidos pela Anistia Internacional, continuasse proclamando em 1977 que era "um prazer" representar a Alemanha naquele país. Kastl jogava tênis na residência do embaixador alemão em Buenos Aires com o almirante Emilio Massera, um membro da junta de governo, que semanas antes do golpe de Estado de 24 de março de 1976 havia confidenciado a Kastl a determinação das Forças Armadas de interromper o processo democrático e tomar o poder pela força.

Que interesses econômicos a Alemanha tinha na Argentina nos anos 1970?

Em Buenos Aires, havia uma simpatia explícita dos diplomatas alemães pela ditadura militar argentina, e em Bonn também. Eram os anos da Guerra Fria e a Argentina fazia parte do bloco de países que impulsionava um modelo econômico neoliberal, que interessava muito à Alemanha Ocidental. Quando vemos as informações de vendas de armas por parte de empresas alemãs à Argentina entre 1976 e 1983 e as comparamos com os anos anteriores, verificamos um crescimento muito grande nessa cifra. Thyssen vendeu submarinos à ditadura argentina, enquanto a KWU, da Siemens, construiu as centrais atômicas Atucha I e Atucha II, na província de Buenos Aires.

Empresas como Mercedes Benz venderam caminhões de transporte de tropas aos militares argentinos, enquanto outras firmas alemãs se beneficiaram da febre modernizante da ditadura, levando parte do lucro obtido no período do mundial de futebol de 1978. Bem lembrou o professor Ernst Käsemann: "o governo alemão se interessa mais em vender carros Mercedes Benz do que salvar vidas humanas." [Nota da redação: a filha de Käsemann, a socióloga alemã Elisabeth Käsemann, foi sequestrada por militares argentinos em 1977, torturada e possivelmente executada.]

Com o Chile também existiam relações comerciais: nos anos 70, foram realizados vários negócios de armamento. O político social-cristão Franz Joseph Strauss, da Baviera, em uma viagem ao Chile em 1974, elogiou publicamente a política econômica do regime de Augusto Pinochet e visitou o enclave alemão Colonia Dignidad, que serviu de centro de torturas à polícia secreta. Qual foi a posição oficial da Alemanha Ocidental diante da ditadura chilena?

A posição não variava em comparação com a ditadura militar argentina. Também quanto ao Chile, o discurso era que Pinochet havia tomado o poder para impedir que o comunismo se estendesse por toda a América do Sul e que, dessa forma, os países capitalistas ocidentais perdessem seus aliados. Havia uma simpatia franca com a ditadura de Pinochet, pois se achava que poderia ser perigoso permitir que o modelo implantado no Chile por Salvador Allende avançasse.

Há documentação, por exemplo, de jovens colonos que fugiram da Colonia Dignidad e que buscaram apoio na Embaixada da Alemanha em Santiago do Chile. Em vez de prestarem a ajuda necessária, os diplomatas alemães os devolviam à Colonia Dignidad, onde, naturalmente, mais sessões de torturas os esperavam. E falo de casos de jovens alemães que eram colonos no dito lugar conhecido como Colonia Dignidad.

Devemos deixar claro que a política da Alemanha Ocidental em relação à ditadura militar argentina não era diferente da adotada pela Alemanha Oriental. Neste caso, os políticos da Alemanha Oriental seguiam as ordens da União Soviética.

Quando os EUA se declararam em conflito com a Argentina e tiraram todo apoio à ditadura militar, a União Soviética bloqueou qualquer condenação da ditadura militar argentina dentro das Nações Unidas. A Alemanha Oriental seguiu esta linha imposta por Moscou de não condenar a ditadura militar argentina por suas violações dos direitos humanos. A Argentina vendia trigo à União Soviética. A posição da Alemanha Oriental, portanto, não diferia muito da posição de simpatia explícita por parte da Alemanha Ocidental.

Ao mesmo tempo, ambos os estados alemães receberam milhares de exilados políticos. Em que medida a presença dos exilados sul-americanos, suas atividades políticas e suas reivindicações foram percebidas pela opinião pública na Alemanha e influiram sobre ela?

A Alemanha Federal aceitou receber exilados chilenos e argentinos, após exaustivas e muito lentas investigações acerca da periculosidade dos solicitantes de asilo. As embaixadas de outros países, como Itália, Reino Unido, Espanha, eram mais ágeis, aceleravam as decisões para abreviar a tortura e a incerteza por que passavam os presos políticos que podiam trocar a prisão pelo exílio.

A Alemanha Oriental foi, neste aspecto, mais pragmática e solidária para aceitar como exilados políticos os perseguidos chilenos, de orientação socialista e comunista. Mas lá os exilados chilenos tinham menos liberdade do que na Alemanha Ocidental.

Foram os melhores embaixadores de seus povos para transmitir a sua dor, seu sofrimento e suas esperanças de solidariedade internacional. Não era fácil, tanto em um como em outro lado da Alemanha, para os exilados latino-americanos se adaptarem à vida no país. Especialmente a Igreja Evangélica Luterana na Alemanha Ocidental concedia bolsas para ajudar a centenas de exilados políticos latino-americanos com as quais eles puderam estudar e financiar uma parte de suas vidas. Mas a liberdade de circular era muito restrita.

Argentina, Chile, Brasil e Paraguai são países que serviram de refúgio para ex-nazistas que fugiram da Alemanha após o fim da Segunda Guerra Mundial. É possível se estabelecer alguma relação entre estas circunstâncias e o fato de que a Alemanha se calou em relação a muitas violações dos direitos humanos durante as ditaduras no Cone Sul?

Há uma relação bastante efetiva nesse sentido. O fato de que muitos nazistas conhecidos se estabeleceram na América do Sul determinou justamente que as investigações realizadas em um ou outro país não fossem adiante. É o caso de Adolf Eichmann, Klaus Barbie e Josef Mengele, para citar apenas os mais conhecidos.

Eichmann trabalhava para uma subsidiária da Mercedes Benz na Argentina. Barbie tinha portas abertas junto aos presidentes da Argentina, Paraguai e Brasil. Refiro-me aos anos 50 até a década de 80. Há evidências de que os nazistas conhecidos eram muito ativos na Bolívia, Paraguai e Brasil. Esses nazistas de alto escalão eram representantes, em alguns casos, de interesses de empresas alemãs, e graças aos seus contatos de alto nível nos governos, podiam obter contratos para empresas alemãs.

Em 1978, durante a Copa do Mundo na Argentina, Hans-Ulrich Rudel, um aviador nazista condecorado por Hitler, estava trabalhando como assessor do presidente da Argentina e também para o Ministério da Aeronáutica da Argentina. Quando a equipe da Alemanha chegou ao país, ela pôde usar o campo de recreação da Força Aérea da Argentina, onde permaneceu.

Hoje, sabemos dos chamados "voos da morte", em que aviões da Força Aérea e das forças navais da Argentina foram usados ​​para transportar milhares de inocentes, presos acusados ​​de violência e pessoas "desaparecidas” para serem jogados no Rio de la Plata ou no mar. A equipe nacional da Alemanha foi claramente usada por pessoas próximas do regime militar para lavar a imagem.

A partir de que momento se pode falar de uma mudança na atitude da Alemanha em relação às ditaduras, de uma condenação aberta de violações dos direitos humanos?

É difícil encontrar uma posição clara de condenação durante os anos 70 e 80 da Alemanha Ocidental em relação à ditadura na Argentina. Em uma série de decisões no âmbito da ONU, a Alemanha se absteve devido à sua simpatia pela ditadura. Mas quando ocorre a Guerra das Malvinas, em 1982, a decisão já não era por países isolados, mas por acordos feitos em nível europeu.

Então, os países da UE votavam em bloco e, portanto, se o Reino Unido estava sendo agredido pela Argentina, os outros países europeus tinham que apoiar Londres. Isso determinou que a Alemanha Ocidental também se pusesse ao lado do Reino Unido e contra a ditadura militar na Argentina.

Mas a crítica aberta, um claro distanciamento da ditadura argentina só ocorreu mais tarde, com a ascensão do Partido Verde e seu líder, Joschka Fischer, ao governo em 1998. Até essa data, militares da Argentina continuavam recebendo a formação e instrução na Alemanha.

Continuava a venda de armas para a Argentina. Mas apenas com os Verdes se levou a sério as reivindicações das mães dos desaparecidos de origem alemã na Argentina e começou-se a rever essa política. Não só pela presença dos Verdes no governo, mas também por uma série de cláusulas que envolvem países europeus e que estabelecem que a ajuda ao desenvolvimento ou a concessão de empréstimos não podem ser liberadas sem se avaliar a situação dos direitos humanos no país destinatário.

Foram, portanto, diversos fatores que determinaram uma crítica mais aberta à política negativa de direitos humanos implementada pela ditadura militar na Argentina.

Que papel o Centro de Direitos Humanos de Nurembergue desempenhou neste contexto?

A partir de 1989, desenvolvemos um trabalho de sensibilização da opinião pública e um trabalho de pesquisa para revelar os mecanismos de impunidade que estavam imperando na América Latina. Foi elaborado um estudo sobre a Operação Condor, que foi difundido na América Latina e ajudou nos processos contra o general Pinochet no Chile, contra o general Videla e contra outros membros da ditadura na Argentina e no Paraguai.

Em 1998, foi criada a "Coligação contra a Impunidade na Argentina", com o apoio de 15 organismos humanitários e de direitos humanos da Alemanha. Ela impulsiona processos contra a ditadura na Argentina e no Chile e realiza seu trabalho com muito sucesso. Conseguiu que a Justiça alemã tenha emitido por um lado ordens de captura internacional e, posteriormente, também pedidos de extradição do general Videla, do general Mason e do almirante Massera.

Esta decisão da Justiça alemã incentivou a luta contra a impunidade na Argentina e determinou o fim da impunidade por crimes cometidos entre 1976 e 1983, de modo que agora não só os responsáveis pelos roubos de crianças ou os culpados por certos crimes possam ser julgados na Argentina. A partir do ano 2005, com a revogação das leis de impunidade, graças, entre outros, à pressão da Alemanha, agora, todos os familiares das vítimas podem apresentar suas denúncias.

Existem atualmente mais de 800 militares argentinos presos por crimes de direitos humanos. A luta das mães dos desaparecidos, a luta dos filhos dos desaparecidos, as Avós da Praça de Maio entre outros, em conjunto com os organismos de apoio na Europa, conseguiram colocar um fim à impunidade e, por isso, é que hoje é possível investigar estes crimes. A Coalizão contra a Impunidade tem desempenhado um papel muito importante.

Quais são as tarefas ainda pendentes?

Estou satisfeito em saber que o governo brasileiro emitiu uma lei para criar uma comissão da verdade e completar essa dívida que tinha de ser paga às famílias das vítimas da ditadura brasileira. O Brasil está dando um passo muito importante para superar criticamente o seu passado com esta comissão da verdade, e é o meu maior desejo que ela tenha muito sucesso para alcançar a verdade e a justiça, concluir as reformas institucionais e conseguir garantir às vítimas que esses crimes de direitos humanos não sejam repetidos.

Entrevista: Mirjam Gehrke (md)
Revisão: Carlos Albuquerque