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"A cultura brasileira tem um dado messiânico muito forte"

Vanessa Fischer28 de junho de 2002

Antônio Araújo, diretor da peça "Apocalipse 1,11", que está sendo exibida em Colônia no 9º festival Teatro do Mundo, falou à DW-World.

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"Apocalipse 1,11", de Antônio Araújo, à mostra no festival Teatro do MundoFoto: Lenise Pinheiro

DW-World: Antônio, por que foi tão importante para você fazer a ligação entre a matéria bíblica e a miséria na realidade brasileira?

Antônio Araújo:

O interesse num tema público vem desde a origem do grupo Teatro da Vertigem, em 1992. O único tema comum para todos naquele momento era justamente a questão do sagrado, da religiosidade, e como esta se dá nos dias atuais. Daí fizemos os primeiros trabalhos, O Paraíso Perdido, baseado no Gênese, e O Livro de Jó, também do Antigo Testamento. Nós carregamos este tema até a última parte da trilogia, ou seja, até o Apocalipse.

Neste último trabalho, se juntou o desejo de falar mais explicitamente da realidade brasileira, desse estado de caos, de absurdo, de se viver numa cidade com São Paulo. No espetáculo a gente coloca muito do fundamentalismo religioso bastante forte, que existe no Brasil hoje. Isto se manifesta em exorcismo na televisão, portanto nós temos uma cena de exorcismo no espetáculo. Existe uma exploração da fé muito grande na mídia.

Acho que a cultura brasileira tem um dado messiânico muito forte, de estar sempre esperando um salvador, um político, enfim alguém que resolva todos os problemas. O espetáculo vai no sentido contrário, a gente nega um pouco isto. Até que, no final da peça, João percebe que está em suas mãos transformar o lugar onde ele vive em sua "Nova Jerusalém". O espetáculo vai na contramão desse dado messiânico.

DW-World O que existe por trás da busca de lugares pouco convencionais, neste caso uma prisão?

Antônio Araújo - No caso do Apocalipse, tem a ver com o aspecto da punição e do castigo, que no texto bíblico original é muito forte. A idéia foi levar o espectador para esse lugar da reclusão e da punição por excelência, que é o espaço do presídio. O espetáculo foi criado em São Paulo e ali se acoplava mais um elemento, que era a questão do próprio Carandiru, onde, com o massacre dos 111 prisioneiros, nós vivemos, pelo menos na cidade de São Paulo, um dos momentos mais apocalípticos.

DW-World:O que é que você espera transmitir para o espectador?

Antônio Araújo: Nós queremos que o espetáculo seja uma experiência total: sensorial, emocional e intelectual. Queremos evocar uma reflexão sobre o estado do Brasil atual, São Paulo especificamente. O pessoal vai se acostumando com a violência, com o fato de ter medo ao andar na rua... e o desejo nosso é de – através da violência e agressividade que o espetáculo tem – chacoalhar o espectador, tirá-lo da letargia.

DW-World:Como foi a recepção do espetáculo aqui na Alemanha?

Antônio Araújo: Por um lado, acho que o público perde muito porque não consegue entender o texto integral. Além disso, eu acho que existem elementos culturais, aliás contextuais, que são difíceis de serem transportados. Esta crítica e problematização de questões brasileiras então escapam a eles. A gente, por exemplo, fala de Sílvio Santos, e aqui ninguém sabe quem ele é.

Mas a gente tem tido respostas bem positivas. Apesar de não ser tão claro este contexto cultural, me disseram que o espetáculo toca, que eles sentem que ficaram sensibilizados, que continuavam pensando sobre o trabalho. Acredito que, de alguma maneira, o espetáculo tem dialogado com a platéia.

DW-World:O grupo deu um espetáculo para os prisioneiros da penitenciária. Quais foram as reações?

Antônio Araújo: Tivemos um encontro com os detentos que assistiram ao espetáculo, e a leitura que eles fazem é muito interessante. Muitos, por exemplo, colocaram o foco na questão dos direitos humanos no Brasil. Fizeram também a distinção de que, aqui na Alemanha, eles como presos às vezes se sentem muito desrespeitados, mais no plano psicológico, mais abstrato, e que no Brasil o desrespeito chega a um plano físico, da matéria.

DW-World: O Fernando Bonassi, que trabalhou na dramaturgia do Apocalipse, passou um ano em Berlim como bolsista do DAAD, portanto tem muitos contatos na Alemanha. Você poderia imaginar montar uma peça aqui na Alemanha?

Antônio Araújo: A princípio não descarto, mas precisaria ser pensado como, em que termos isto aconteceria. Eu recebi pouco tempo atrás uma proposta para fazer um trabalho na Colômbia, onde apresentamos O Livro de Jó, e estamos discutindo sobre isto. É preciso um contato com a outra cultura, ou seja, um diálogo entre as culturas. Se você pensa em moldes internacionais, o teatro sempre é muito local. Mesmo se você pega a nata do teatro alemão, ninguém conhece Peter Stein ou Frank Castorff no Brasil. Quer dizer, o teatro acontece muito no lugar onde ele está. Está muito ligado à matéria. Nesse sentido, é claro que a música e o cinema têm uma facilidade de "exportação" bem maior. É uma dificuldade talvez da própria arte.

DW-World: Quais são as suas observações comparando a produção de teatro aqui na Alemanha com a do Brasil?

Antônio Araújo: Os artistas aqui chegam a criticar a subvenção estatal, alguns acham que ela gera uma certa burocratização. Tive a oportunidade de assistir a vários espetáculos em diferentes cidades e, para mim, é inegável a qualidade com a qual é feito um teatro experimental, radical e questionador. É impressionante ver como a média de um trabalho artístico mais ousado está garantida aqui e não no Brasil.

DW-World: Você tem esperança de que algo mude, ou de que o Brasil dê um passo para a frente depois das eleições em outubro?

Antônio Araújo: Esperança eu tenho, você sempre fica torcendo para que a democracia se fortaleça e que a gente não corra o risco de um Color II na nossa vida. Mas acho que ainda é uma democracia muito incipiente e acredito também que isto esteja menos nas mãos de um presidente. É o que eu estava dizendo dessa questão messiânica que a gente tem. Acho que os brasileiros têm que chamar para si esta responsabilidade e desenvolver uma atitude de cobrança e de fiscalização. Não basta você ter alguém no poder. Existe uma passividade muito grande na sociedade brasileira quanto a isso. Ninguém resolve a vida do outro, ainda mais num país tão contraditório e cheio de problemas como o Brasil. Mas ainda acho que há saída, senão já estaria fora do país.