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A falta de vozes negras na política

20 de novembro de 2019

Mais da metade dos brasileiros são pretos ou pardos, mas pouco mais de 20% dos deputados e senadores pertencem à tal parcela da população. Ativistas negros defendem a criação de partido e de bancada que os represente.

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Talíria Petrone, do Psol, é deputada federal pelo Rio de Janeiro
Talíria Petrone, do Psol, é deputada federal pelo Rio de JaneiroFoto: Getty Images/AFP/D. Ramalho

A maioria da população brasileira (55,8%) é composta por pretos (9,3%) e pardos (46,5%), segundo o IBGE. Mas isso não se reflete na política. No Congresso, que deveria espelhar a verdadeira cara do Brasil, pretos e pardos representam uma minoria.

Na Câmara, dos 513 deputados federais, 20 se declaram pretos, e 102, pardos, somando 24% do total. No Senado, três se dizem pretos, e 13, pardos, o que representa 20% do 81 senadores, segundo um levantamento do jornal Folha de S. Paulo.

"Ainda estamos [em termos de representação política de pretos e pardos] muito aquém da proporção da população de 55%, e também não tem a representatividade substantiva em relação às pautas da população negra, por falta de acesso aos postos de comando dentro do Congresso", diz Thiago Amparo, professor da FGV Direito de São Paulo.

Para Amparo, quatro pautas essenciais para a população negra precisam ser discutidas urgentemente: a endêmica violência policial; o encarceramento em massa por drogas; ações afirmativas visando o mercado de trabalho, como incentivos para que as empresas contratem negros; e uma melhor inclusão, na grade escolar, de conteúdo como história da África e da escravidão. Mas falta representação negra para apoiar tais pautas.

"O Brasil tem, principalmente desde a década de 80, vários movimentos negros, como o Movimento Negro Unificado (MNU) e a Coalizão Negra por Direitos", diz Amparo. "Tem um processo que ainda está caminhando lentamente de reconhecer a identidade racial como uma categoria política importante. É necessário termos representantes negros falando sobre a negritude, e não brancos adotando a pauta da população negra." Para o jurista, falta um "partido negro".

"Somos o segundo país em população negra do mundo, mas ela está sub-representada. É bem preocupante", diz a historiadora Anna Karla da Silva Pereira. Cofundadora do partido Frente Favela Brasil, há três anos ela lidera o processo de registro do "primeiro partido negro do Brasil" junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

"A gente não tem o poderio político e o recurso financeiro que as oligarquias têm no Brasil. E isso também é uma ferramenta para nos manter fora dos espaços políticos", diz Pereira.

Ela estima que a Frente Favela Brasil gastará entre 2 milhões e 3 milhões de reais para concluir o registro. Ou seja, juntar e validar as assinaturas nos cartórios e pagar os advogados que acompanham os trâmites legais junto ao TSE. As vaquinhas virtuais ainda não conseguiram levantar esse montante.

Até agora, o partido juntou cerca de 190 mil assinaturas de eleitores. Falta, portanto, muito para chegar às quase 492 mil assinaturas necessárias, a serem coletadas em pelo menos nove estados. Eles já perderam muitas assinaturas por não terem seguido à risca o processo burocrático, conta Pereira. "Não é a toa que a gente é sub-representado na política. Todo o processo de construção e de criação do próprio partido é excludente", diz.

Marielle como referência

Mas há sinais de que o movimento negro pode ganhar espaço, diz Pereira, principalmente a partir da figura de Marielle Franco, vereadora negra assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro.

"Ela é uma referência para todas nós [mulheres negras], sem dúvida. Mas muito mais pelo enfrentamento e pelas pautas que ela colocava do que pela morte. A vida dela tem muito a nos ensinar", afirma Pereira.

Protesto contra a morte de Marielle Franco no Rio
Protesto contra a morte de Marielle no Rio: vereadora se transformou em símbolo da luta de mulheres negras no BrasilFoto: Getty Images/AFP/M. Pimentel

Marielle se transformou em símbolo da luta de mulheres negras no Brasil. "Essa visibilidade da morte da Marielle tornou mais forte a discussão sobre como somos tratadas nesses espaços. Pois quando temos uma mulher negra que destoa de todo o sistema, ela é assassinada."

A "onda Marielle" levou, nas eleições de 2018, quatro mulheres negras do Psol, partido de Marielle, a cargos representativos. Dani Monteiro, Mônica Francisco e Renata Souza hoje representam a população negra na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), enquanto Talíria Petrone representa o Rio na Câmara dos Deputados em Brasília.

Para Pereira, a morte de Marielle teve um impacto eleitoral local devido ao foco da mídia no Rio de Janeiro. "Se isso tivesse acontecido no interior do Maranhão, talvez não tivesse tido impacto algum."

"Não temos uma bancada de negros"

Para o empreendedor e ativista negro Celso Athayde, não basta apenas eleger representantes negros. "Precisamos ver o que é representação negra e o que é apenas negro no espaço de poder. Fisicamente mais negro deve ser o Hélio Negão, mas ele não se posiciona como representante negro. O que é legítimo."

Athayde se refere a Hélio Fernando Barbosa Lopes (PSL-RJ), deputado federal mais votado no Rio de Janeiro e conhecido como "sombra de Bolsonaro" por estar sempre ao lado, ou, melhor dizendo, atrás do presidente.

"Temos, também, a [ex-governadora] Benedita da Silva, o [senador] Paulo Paim e o [deputado federal] Orlando Silva. Mas não temos uma bancada de negros. Estes três se reconhecem como negros, mas, ao contrário dos evangélicos, eles não se juntam para defender uma pauta, uma causa, um projeto", diz. Athayde.

"Assim, eles não são, necessariamente, representações negras. São apenas negros que estão disputando a política. E são automaticamente engolidos pelos membros dos seus partidos, que normalmente são brancos."

"As estruturas são muito embranquecidas"

A jornalista e ativista negra Flávia Oliveira concorda. "Falta unidade ao grupo. No Brasil, identidade racial é uma coisa relativamente nova, tem talvez uma década, e vem muito numa esteira de um aumento de escolaridade e de consciência racial, de uma percepção mais intelectual do significado e do dano que a desigualdade causa."

Comentarista da GloboNews e colunista do jornal O Globo, Oliveira ressalta as raízes históricas da pouca representação. "Um país forjado na escravidão como o Brasil foi muito eficiente em tirar dos negros a autoestima e a identidade. Desconstruir isso é um caminho longo, sem atalho."

As estruturas partidárias não facilitam as coisas nem para os negros nem para as mulheres, diz a jornalista. "As estruturas são muito embranquecidas e masculinas, e os partidos da direita e da esquerda são controlados por pessoas brancas. É preciso haver um redesenho das estruturas partidárias e uma repartição mais efetiva dos recursos."

Ela vê, no entanto, sinais positivos, como os vários pré-candidatos negros para as eleições municipais em Salvador. "Aos poucos, a gente está avançando."

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