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Aborto legal não é vergonha

20 de agosto de 2020

Parece que no Brasil é necessário enfatizar o óbvio: não são as mulheres que precisam se justificar após serem estupradas. O fanatismo moral corrói os pilares da democracia por dentro.

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Protesto a favor da legalização do aborto em São Paulo, em agosto de 2018
Protesto a favor da legalização do aborto em São Paulo, em agosto de 2018Foto: picture-alliance/C. Frage

Caros brasileiros,

Por que ter vergonha de um aborto legal como se fosse um crime? O caso da menina capixaba de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada me fez refletir sobre a deturpação dos debates políticos no Brasil.

No caso da vítima do Espírito Santo ficou evidente: o silêncio mata, e uma moral dupla também. Mata a infância e o futuro de uma menina inocente que aguentou quatro anos de estupros cometidos pelo próprio tio em silêncio. E que ainda teve que aguentar acusações relacionadas à "violência do aborto".

Como se isso não bastasse, médicos do hospital de referência em Vitória se negaram a fazer o aborto previsto na lei. Eles alegaram questões técnicas para não realizar o procedimento.

Por fim, religiosos tentaram usar seu poder para transformar uma vítima em uma pecadora. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), dom Walmor Oliveira de Azevedo, falou de "dois crimes hediondos": "A violência sexual é terrível, mas a violência do aborto não se explica, diante de todos os recursos existentes e colocados à disposição para garantir a vida das duas crianças", escreveu em sua conta no Facebook.

Criticando a decisão judicial que autorizou a menina a interromper a gravidez, o pastor pentecostal Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, disse: "Pior que o estupro é o assassinato de um ser indefeso. O desgraçado assassino do juiz que tinha que estar na cadeia."

É um pastor que define se o estupro é pior que o assassinato de um ser indefeso? A menina estuprada não é um ser indefeso? E o "crime hediondo da violência do aborto" é definido por um bispo, e não pelo Código Penal?

É claro que não, mas o debate atual é tão deturpado que parece que no Brasil pastores e bispos parecem querer ditar as leis em vez do Legislativo. Talvez o Congresso Brasileiro devesse deixar claro mais uma vez para os seus eleitores que num Estado de direito as leis são feitas pelos deputados, e não pelo papa ou outros representantes religiosos?

A mencionada "violência do aborto" não consta no Código Penal, que prevê que o aborto em caso de estupro e risco de vida não é considerado crime. Os médicos também não estão acima da lei. Eles têm o direito de se negar a realizar o aborto, mas não podem usar a objeção de consciência para obstruir o acesso da vítima à saúde.

Ainda mantenho a esperança de que representantes do Estado brasileiro façam com que o direito ao aborto nos casos previstos em lei seja garantido. Pelo vice-presidente Hamilton Mourão, por exemplo, que numa entrevista à Folha de S.Paulo disse: "O nosso Código Penal é claro, em casos como esse o aborto é mais que necessário, é recomendado."

Mourão tem razão: o Código Penal é claro. E as pessoas que propagam ódio ou desrespeitam as leis têm que ser responsabilizadas. Por exemplo, a ativista de direita Sara Giromini, que, com a divulgação do nome da menina e a convocação de seus apoiadores a comparecerem ao hospital na capital pernambucana que realizou o aborto, violou tanto o Código Penal quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Infelizmente, o debate atual mostrou que existe uma falsa tolerância com esses inimigos do Estado de direito. Isso é perigoso. Pois o fanatismo moral corrói os pilares da democracia por dentro.

O Estado de Direito brasileiro anda enfraquecido. Sem as mulheres e todos os representantes da sociedade que saíram pelas ruas em solidariedade com a menina violentada, ele murcharia.

Parece que nos tempos atuais é necessário enfatizar o óbvio: não são as mulheres que precisam se justificar após serem estupradas. Também não precisam ter vergonha de fazer um aborto legal. Pelo contrário. São os apóstolos da moral que deveriam levar uma vida exemplar guiada pela compaixão e ética.

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Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

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