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MídiaAfeganistão

Afeganistão: depois da guerra, a batalha das fake news

Ahmad Wali Achakzai | Tetyana Klug
12 de setembro de 2021

Talibãs deram por encerrada a guerra afegã, mas nas redes sociais segue o combate de versões alternativas dos fatos. Além de notícias, declarações e perfis falsos, até vídeos de jogo de computador são usados como arma.

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Afegão armado com multidão ao fundo
Talibãs prometeram ordem e paz para Afeganistão, mas imprensa já sofre repressãoFoto: Gibran Peshimam/REUTERS

Durante 45 segundos, salvas de tiros iluminam o céu noturno, ao fundo percebe-se uma paisagem montanhosa. Esse vídeo postado em 7 de setembro de 2021 no Twitter foi supostamente gravado na noite anterior, no distrito de Rukha, na província afegã de Panjshir, considerada o último bastião da resistência aos talibãs no país.

"Terroristas do Talibã atiraram em civis [...] Nós bloqueamos o acesso a Panjshir. Todos os talibãs estão presos em Panjshir", afirma o usuário, que identifica como funcionário do Ministério da Defesa do Afeganistão e conta mais de 33 mil seguidores.

Nos comentários, quase ninguém duvida da veracidade das tomadas. No entanto, fazendo uma pesquisa inversa a partir das imagens isoladas, a equipe de checagem de fatos da DW conseguiu em apenas poucos minutos encontrar o mesmo flime, postado já em 23 de fevereiro de 2020.

Só esse achado já basta para desqualificar o vídeo como um registro de ocorrências atuais no Afeganistão. Mais tarde, também o Twitter passa a advertir, numa nota, tratar-se de material retirado do contexto original. Apesar disso, foi assistido mais de 43 mil vezes.

Desinformação serve a velhas narrativas

A tomada de poder no Afeganistão pelo Talibã é acompanhada por falsificações e desinformação, como já se viu antes em muitos outros conflitos. Grande parte dos fakes aparentemente visa provar que o Paquistão teria participado da conquista do Vale do Panjshir. Sobretudo mídias indianas propagam essa versão.

O motivo para tal são os 70 anos de rivalidade entre indianos e paquistaneses, e o fato de que tais notícias têm cotação alta entre os usuários das redes, explica Shamil Shams, da DW Ásia.

"Na Índia, impera a opinião de que o Paquistão apoia o Talibã dos pontos de vista fianceiro, militar e diplomático, com todos os meios. Então muitos veículos indianos aproveitam a ocasião para disseminar tais notícias através da redes sociais, imprensa e mídias digitais, dizendo: 'Vejam só, a nossa narrativa de que o Paquistão apoia o Talibã estava certa.'" Jornalistas igualmente compartilharam sem verificação prévia os fakes em curso na internet.

Nada além de um jogo de computador

A divulgação de filmes e fotos antigos, no contexto indevido, é um recurso muito empregado. Assim, em 6 de setembro publicou-se um outro vídeo alegadamente mostrando o abate de um jato paquistanês por combatentes da resistência no Vale do Panjshir.

Também aqui, a busca inversa leva até uma gravação um pouco mais longa, postada no Instagram já em 6 de outubro de 2020, sem indicação de hora nem lugar. Nos comentários russos, manifesta-se a suposição de que possa se tratar de um jogo de computador.

Ao mesmo tempo, o filme foi divulgado na rede social russa Vkontakte como suposto registro da derrubada de um avião na região de Nagorno-Karabakh. Além disso, a mesma tomada foi publicada em 25 de fevereiro de 2021 no YouTube, sob o título "Sistema de defesa aérea ZSU-23-4 Shilka em ação". Também aqui, os comentários citam um jogo de computador como possível origem das imagens: a simulação militar Arma 3.

Screenshots das redes sociais
Vídeo supostamente provando participação paquistanesa no Afeganistão é mais antigo e possivelmente originário de um jogo de computadorFoto: Twitter/Instagram

A emissora de notícias indiana Republic TV e diversos outros veículos do país igualmente caíram na armadilha dessas cenas simuladas, transmitindo-as como material exclusivo fornecido pela Hasti TV, que supostamente provaria o ataque ao Panjshir pelas Forças Aéreas paquistanesas.

Também visando comprovar uma participação militar do Paquistão no conflito afegão, foi divulgada em 6 de setembro a suposta foto de um jato paquistanês abatido no Vale do Panjshir. No entanto, como também demonstrou uma simples pesquisa inversa, a imagem não provém do Afeganistão e já data de três anos atrás: ela mostra o caça F-16, da Força Aérea americana, caído no Arizona em abril de 2018.

Neste meio tempo, foi cancelada a conta do Twitter em questão, que alegadamente pertenceria a Ahmad Massoud, líder da resistência no Panjshir e filho do herói nacional afegão Ahmad Shah Massoud. Assim, não foi possível conferir sua legitimidade.

Screenshot de redes sociais
Foto que mostraria avião paquistanês abatido em Panjshir é, na verdade, um caça americano caído no Arizona três anos antesFoto: Twitter.com

O grande volume de material falso dirigido contra o Paquistão pode levar a crer que sejam injustificadas as assertivas de que Islamabad estaria apoiando os talibãs. Porém a coisa não é tão simples assim, alerta o jornalista Shams, da DW.

"Diversos observadores sérios e independentes disseram que o Paquistão apoia o Talibã. Em 1996, junto com a Arábia Saudita, ele foi um dos primeiros países a reconhecer o regime talibã. Também o acordo entre os EUA e o Talibã nunca teria sido possível sem o respaldo paquistanês. Todo mundo sabe disso: o Paquistão e seus militares têm enorme influência sobre o Talibã."

Perfis falsos e falsas páginas de notícias

Outro fenômeno muito disseminado nas redes sociais são contas falsas de políticos afegãos famosos, nos idiomas dari e pachto. Através delas, se propagam numerosas notícias e declarações falsas sobre a situação atual.

É o caso da empresária e modelo Fatima Rabbani, sob cujo nome tem sido criadas diversas contas falsas. Seu pai, o ex-presidente Burhanuddin Rabbani, lutou contra o Talibã no fim dos anos 1990, ao lado do militante Ahmad Shah Massoud. Ambos foram mortos em atentados suicidas.

Agora, justamente a filha do chefe de Estado estaria se manifestando contra a unidade afegã, numa postagem do Facebook amplamente difundida como screenshot. Nela, "Fatima Rabani" (sic) afirma que os próprios habitantes de Panjshir seriam responsáveis por "ninguém se sentir ligado a eles", que jamais teriam aceitado e reconhecido o nome do Estado do Afeganistão, o hino nacional, o governo, ou mesmo o termo "afegão".

Além do conteúdo controverso e da grafia errada do nome, um exame do ID do usuário ou do localizador uniforme de recursos (URL) do perfil de "Fatima Rabani" no Facebook confirma a suspeita de fraude: o URL traz o nome de quem originalmente criou o perfil.

Screenshot de redes sociais
Postagem falsa coloca declarações controversas na boca de filha de ex-presidente afegão. Nome errado não impediu que fosse compartilhadaFoto: Facebook

Notícias falsas se propagam rapidamente no Afeganistão também de outras maneiras. Numerosos perfis do Facebook nas duas línguas nacionais se apresentam como páginas de notícias, mas que em geral só divulgam fake news. Isso não as impede de serem extremamente bem-sucedidas, como se vê nos números elevados, tanto das interações geradas por suas postagens, como de seguidores.

Um exemplo é uma página em pachto que já contava mais de 57 mil seguidores apenas poucos dias após ser criada, em 31 de agosto. Numa postagem de 8 de setembro, afirmava que "só nesta semana houve no Paquistão cinco grandes atentados" que teriam "abalado o país".

Sem indicar fontes, cita-se, de fato, um ato terrorista ocorrido em 5 de setembro na província de Beluchistão, porém com um número de vítimas muito superior aos dados oficiais. Não se fornecem detalhes sobre os outros quatro supostos atentados.

Screenshot de redes sociais
Perfis em dari e pachto propagam "fake news" sob a fachada de páginas de notíciasFoto: Facebook

A postagem é complementada por três imagens e um link que conduziria a "material de vídeo sobre três carros-bombas". A busca inversa revela que uma foto mostra, na verdade, a catastrófica explosão no porto de Beirute, Líbano, em 4 de agosto de 2020. As outras duas, em contrapartida, provêm do Paquistão, mas são dos anos 2017 e 2020. O link encaminha apenas a um website duvidoso, em vez dos vídeos prometidos.

Embora tenha sido fácil desvendar todas essas irregularidades com uns poucos cliques, só nas primeiras 24 horas a postagem em questão fora partilhada mais de 700 vezes, comentada mais de 500 e "curtida" mais de 2.300.

Redes não substituem imprensa independente

A situação no Afeganistão se torna cada vez mais perigosa para os jornalistas. Na sexta-feira, a agência de notícias Reuters revelou imagens de profissionais de Cabul brutalmente espancados pelos talibãs por noticiarem sobre protestos populares.

Tudo indica que para os afegãos crescerá a dificuldade de se informarem de modo confiável através da imprensa independente. As redes sociais não são um substituto adequado à mídia profissional, pois tanto no país quanto em toda a região, nelas circulam numerosas notícias falsas, as quais são então propagadas pelos usuários, sem qualquer filtro crítico ou mesmo inconscientemente.

Advertência: Para não aumentar ainda mais o alcance das notícias falsas, proporcionando-lhes cliques adicionais, a DW intencionalmente evita fornecer os links para as postagens originais nas redes sociais. Em vez disso, são empregados screenshots anonimizados ou links para versões arquivadas.