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História

Alemanha devolve crânio de indígena ao Japão

1 de agosto de 2017

É o primeiro caso de devolução de restos mortais ao povoado Ainu, da ilha de Hokkaido. Destino "correto" de ossadas em acervos alemães, inclusive de indígenas brasileiros, é motivo de controvérsia.

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Caixa com crânio de indígena Ainu, originário da ilha japonesa de Hokkaido
Caixa com crânio de indígena Ainu, originário da ilha japonesa de Hokkaido, foi devolvida ao Japão em cerimônia em BerlimFoto: DW/V. Witting

Tadashi Kato mal conseguia conter as lágrimas. "Agora, o morto poderá finalmente iniciar a viagem de volta para casa. É a alma de um sequestrado."

O homem de 78 anos é diretor da Associação Ainu de Hokkaido, uma organização que representa o povo indígena da ilha japonesa. Kato viajou a Berlim nesta semana com um objetivo claro: recuperar o crânio e levá-lo para casa. É a primeira vez que se devolve restos mortais de um ainu a partir de um país estrangeiro.

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Durante a cerimônia de devolução, realizada na segunda-feira (31/07), o professor alemão Alexander Paschos, diretor da Sociedade Berlinense de Antropologia, Etnologia e Pré-História (BGAEU), afirmou que "o crânio foi roubado na calada da noite ".

Até hoje, a vítima da conspiração é desconhecida – mas o culpado pelo roubo, não. Trata-se do alemão Georg Schlesinger. Em 1879, ele desenterrou ilegalmente o crânio de um túmulo ainu claramente identificado em Sapporo, na ilha de Hokkaido. Aparentemente, Schlesinger tinha contato estreito com o médico e antropólogo Rudolf Virchow, mundialmente famoso e que havia fundado a Sociedade Berlinense de Antropologia (Berliner Anthropologische Gesellschaft) em 1869 – uma predecessora da BGAEU.

O primeiro de muitos gestos?

Durante a cerimônia de devolução, realizada na embaixada japonesa na capital alemã, o crânio estava embalado dentro de uma caixa de papelão colocada em cima de uma pequena mesa. A caixa estava envolta num pano branco. Ao lado dela, uma profana pasta de plástico com os dizeres "avaliação antropológica do crânio RV 33, oriundo da coleção de crânios Rudolf Virchow".

Representante do povo Ainu durante cerimônia ritual na ilha japonesa de Hokkaido
Colonização japonesa oprimiu povo Ainu, que sofre discriminação até hojeFoto: picture alliance/Kyodo

O diretor da BGAEU, Alexander Paschos, descreveu a devolução à sociedade japonesa como "gesto de boa vontade". Afinal, ele não tinha nenhuma obrigação legal de devolver o objeto. Porém, "limites morais foram ultrapassados" com o roubo do crânio, disse Paschos.

O fato de a devolução ter ocorrido se deve ao trabalho de Keisuke Nakanishi, correspondente do diário japonês Mainichi Shimbun na Alemanha. Nakanishi iniciou suas pesquisas há mais de um ano e descobriu que existem diversas ossadas Ainu em acervos de museus alemães.

Segundo as revelações do jornalista japonês, mais cinco crânios, restos de ossos e um esqueleto completo fazem parte de coleções alemãs. Mas não se sabe ainda qual é a origem exata dessas ossadas, nem como elas chegaram à Alemanha.

Além do país europeu, existem restos mortais de ainus em outros oito países, segundo informações de Tadashi Kato, representante do povo indígena japonês. Ele acredita que a devolução do crânio pela Alemanha, carregada de simbologia, tenha sido apenas o início.

Ainda não se fala em reparação ou indenizações. O governo japonês também diz que "ainda não pensou no assunto". Kato espera sobretudo que outros países sigam o modelo da Alemanha e possibilitem a devolução de ossadas de Ainu ao seu local de origem.

Discriminação

O governo japonês viu o ato emocional em Berlim como propício. Antes dos Jogos Olímpicos de 2020, em Tóquio, as autoridades querem recuperar a memória sobre as injustiças sofridas pelo povo Ainu no Japão. Os ainus começaram a ser subjugados em 1869, quando a ilha de Hokkaido se tornou uma colônia japonesa.

Os indígenas foram obrigados a ir a escolas japonesas e a assumir os costumes da colônia. A cultura tradicional dos ainus foi sistematicamente oprimida. Até hoje, existe um racismo subjacente contra a comunidade dos ainus, que soma algumas dezenas de milhares de pessoas. E muitas delas se sentem discriminadas até hoje – mesmo que, em junho de 2008, o Parlamento japonês tenha decidido reconhecer os ainus como povo indígena.

Durante a cerimônia em Berlim, Alexander Paschos pediu que os anfitriões japoneses "confrontem a própria história de forma crítica."

Já existem planos nesse sentido no Japão. A cidade de Shira-Oi, na ilha de Hokkaido, deverá se tornar sede de um museu que centralizará o acervo de todos os restos mortais de ainus provenientes de universidades japonesas. O crânio RV 33, de Berlim e que provavelmente era de um homem, também será armazenado ali. Há pesquisas em andamento no Japão para descobrir se o desconhecido tem descendentes.

"Não se pode reverter a História", diz o ainu Tadashi Kato. Mas, segundo ele, a devolução do RV 33 representa um começo para reconstruí-la.

Ossos do Brasil e de outros países

O Brasil protagoniza casos parecidos com o do crânio ainu em Berlim. O mais emblemático envolvendo povos indígenas do país é o do botocudo Joachim Kuêk, que acompanhou o príncipe alemão Wied-Neuwied no vale do rio Doce no século 19 durante expedições de pesquisas etnológicas, zoológicas e botânicas.

Joachim Quäck ou Kuêk em retrato de 1830
Joachim Quäck ou Kuêk em retrato de 1830Foto: gemeinfrei

Kuêk foi levado pelo príncipe à Alemanha e exposto numa sala no palácio de Wied-Neuwied. Em 1833, ele teria caído de uma janela e não resistido ao frio. Seu crânio foi doado ao instituto de anatomia da Universidade de Bonn e, em 2011, devolvido à cidade de Jequitinhonha, para em seguida ser transferido a uma tribo krenak, descendente do indígena.

Se o representante Ainu Tadashi Kato tem esperança de que os demais restos mortais do povo indígena japonês sejam devolvidos ao local de origem, o tratamento mais correto para lidar com o legado material das polêmicas viagens de estudos evolucionistas realizadas por pesquisadores europeus é objeto de debate entre os povos afetados, especialistas e autoridades.

Em matéria divulgada no final de 2016, o canal de televisão alemão MDR afirmou ter obtido uma lista de restos mortais humanos no acervo da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (SPK).

A lista mostra que a SPK guarda mais de mil crânios originários de Ruanda e cerca de 60 da Tanzânia, países que pertenceram à colônia África Oriental Alemã entre 1885 e 1918. Acredita-se que alguns dos restos sejam de insurgentes mortos por tropas alemãs durante as guerras coloniais e que seus crânios tenham sido enviados a Berlim para "experiências científicas".

Enquanto autoridades alemãs e internacionais pressionam por uma "devolução digna" dos restos mortais aos países de origem, as etnias vítimas das "caçadas evolucionistas" desejam, entre outros, uma discussão ampla sobre a discriminação desses povos até os dias atuais.