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Coca não é cocaína

24 de abril de 2010

Um grupo de artistas de países andinos expõe em Berlim obras que tematizam a folha de coca, definida por eles como fundamento da identidade ancestral de suas culturas.

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Imagem do herói latino-americano Simón Bolívar, de Gastón UgaldeFoto: Galerie Siguaraya

O cartão de visita da mostra é a obra daquele considerado enfant terrible da arte boliviana, Gastón Ugalde, famoso por seus retratos de Evo Morales, Simón Bolívar e Che Guevara realizados com folhas ou pigmento de coca. Ugalde mostra na capital alemã duas grandes telas, uma em que retrata Pachamama (Mãe Terra) e outra em que faz uma representação quase abstrata da folha.

O artista faz experimentos com a planta da coca há duas décadas, e as diferentes tonalidades de verde da folha parecem pinceladas que reconstroem as imagens de heróis bolivianos como Antônio José de Sucre e o indígena aymara Tupac Katary y Sisa, que estão pendurados nas paredes do Palácio do Governo e do Parlamento de seu país.

Vidal Bedoya Götter der Sommerzeit
Vidal Bedoya: abstracionismo enraizado na cultura ancestral andinaFoto: Galerie Siguaraya

Tendência na arte

A Galeria Siguaraya reúne em Berlim vários artistas latino-americanos que realizam a primeira exposição em grupo na Europa. A mostra La mata que no mata – A planta da coca na arte exibe tanto os trabalhos de jovens talentos como de reconhecidos artistas de diferentes âmbitos culturais, cujo vínculo é o interesse por uma planta milenar e controversa.

"Há uma tendência, sobretudo na arte colombiana da última década, de usar a planta da coca para expressar determinadas ideias", diz o curador da mostra, Alejandro Villalón, que abriu a galeria em 2007 para acolher a arte latino-americana contemporânea. Villalón descobriu a tendência na arte colombiana através de um artigo do jornalista colombiano Rodrigo Restrepo, que depois o levou a outros artistas provenientes de países andinos.

"Encontrei três artistas peruanos que haviam exposto na Bélgica e que abordavam o tema da coca como um elemento da cultura ancestral andina, diferente dos colombianos que, pela situação política em que vivem, têm uma obra muito crítica em relação ao consumo da coca e à política do governo colombiano a respeito do cultivo", afirma.

Hector Acevedo Der Nacht der Chaman
"La noche del chamán", do peruano Héctor AcevedoFoto: Galerie Siguaraya

Tradições andinas

O peruano Héctor Acevedo aborda o tema da coca, inspirando-se nos mitos e rituais tradicionais. Em seus quadros, o artista retrata a clarividência que os pajés adquirem quando mastigam a planta, que também estabelece um vínculo de comunicação com as almas. Sua obra mostra os rituais campestres de agradecimento à Mãe Terra por uma boa colheita e a tradição de colocar uma folha de coca na boca dos mortos para prepará-los para a viagem ao além.

"Os artistas querem deixar claro que a coca não é cocaína, que é preciso diferenciar uma coisa da outra. Sustentam que a planta é parte de sua cultura e que tem propriedades benéficas para as pessoas, possui efeitos medicinais, como analgésico, é rica em nutrientes e é utilizada em rituais religiosos. É uma planta considerada sagrada entre os povos indígenas andinos", afirma Villalón.

Isso se pode ver na obra de Vidal Bedoya, artista peruano que busca mostrar as tradições enraizadas na cultura andina. O hábito de mascar folha de coca, que tem propriedades como analgésico, remonta a tempos ancestrais no planalto andino do Peru e da Bolívia.

Marcelo Verastegui
Marcelo Verástegui explica sua ideia de contrabando de arteFoto: Galerie Siguaraya

Narcotraficante cultural

Marcelo Verástegui se queixa dos clichês que existem no exterior sobre os colombianos. "A primeira coisa que perguntam quando descobrem que você é colombiano é se você traz cocaína." O artista levou a Berlim uma instalação intitulada Folhas de coca processada, com a qual faz uma simulação de contrabando, só que em vez do pó branco, o que há dentro das chamadas panelas são fotografias. Com isso ele alude ao processo químico de fabricação da cocaína, para o qual são necessários ingredientes similares aos que se usa no processo de revelação das fotos.

Verástegui fotografou 16 plantas cultivadas de maneira doméstica por razões culturais por parte de camponeses colombianos provenientes de diferentes regiões. Através do programa Google Earth, ele posicionou cada planta em uma página de internet, com a qual documenta a rede de "tráfico". Cada planta é fotografada em partes, com as quais logo reconstrói o arbusto como se fosse um quebra-cabeça.

As diferentes fotos necessárias para reconstruir cada planta integram uma panela que vende por 144 dólares, o preço que custaria uma panela de cocaína de 150 gramas na Colômbia. Adicionalmente dentro de cada pacote há um número de fotografias excedentes que levam o registro da planta e podem ser utilizadas como cartão postal. Com isso, o comprador se converte em um traficante, mas de fotografias.

Lucia Falconi Alles ändert sich
"Todo cambia" de Lucía FalconiFoto: Galerie Siguaraya

Crítica social

Na Colômbia, a planta que cresce entre 800 e 2.000 metros de altitude é símbolo de narcotráfico e lavagem de dinheiro, da guerrilha, do dinheiro fácil e da corrupção. Verástegui critica a ideia de que a planta seja satânica e culpada de todos os males.

O jovem artista colombiano Edinson Quiñones faz uma crítica ao uso da cocaína pelo homem branco. Bonecos de cera com claros traços ocidentais se fundem a montanhas de cocaína em flocos. As fotografias, de cores fortes, fazem menção à alucinação e à decadência que seu consumo provoca.

Lucía Falconi, equatoriana radicada em Munique, chama a atenção com sua obra para o uso de produtos químicos contra o cultivo ilegal, que não apenas matam a planta da coca, mas também contaminam o solo e dizimam outros cultivos. "Sua obra está relacionada com a ecologia e a natureza, suas esculturas são todas orgânicas." A peruana Belinda Tami utiliza as folhas de coca em seus quadros em textura, com cores sóbrias empasteladas.

O próprio Alexander von Humboldt recomendava efusivamente aceitar uma taça de infusão de coca que os indígenas peruanos ofereciam como gesto de boas-vindas aos visitantes que chegavam às montanhas. Em Berlim, não se oferece uma infusão, mas sim uma mostra que convida à reflexão.

Autora: Eva Usi (ff)
Revisão: Carlos Albuquerque