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Até que ponto a blasfêmia é permitida na Europa?

Silja Thoms
31 de julho de 2023

A liberdade de expressão é vista como pilar fundamental da democracia, mas provocações dirigidas a religiões têm estimulado o debate sobre possíveis limites - no caso mais recente, Suécia registra nova queima do Alcorão.

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Um homem fala em um megafone enquanto segura o Alcorão, que pega fogo. Ao lado, outro homem segura duas bandeiras da Suécia e filma a ação com dois celulares.
Casos de protestos em que ativistas queimam o Alcorão têm se repetido na Suécia em 2023Foto: Stefan Jerrevång/TT NEWS AGENCY/picture alliance

A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa estão fortemente enraizadas na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Sociedades democráticas consideram importante tolerar diferentes opiniões, mesmo as que possam ofender sensibilidades religiosas.

Mas isso tem levantado repetidamente a questão de até que ponto declarações críticas ou que zombam de crenças religiosas são aceitáveis e como uma sociedade deve lidar com elas.

O mais recente episódio ocorreu nesta segunda-feira (31/07) em frente ao Parlamento sueco, na capital Estocolmo. Dois homens pisotearam o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e depois atearam fogo na obra.

Casos que se repetem

Em 2023, a Suécia já registrou vários episódios desse tipo. Um homem, por exemplo, declarou que pretendia fazer isso na última quinta-feira (27/07). O anúncio gerou protestos em muitos países islâmicos antes de o ato acontecer. Na ação, ele profanou o livro, mas não o queimou.

Em fevereiro, a polícia sueca proibiu ações desse tipo. Pouco tempo depois, no entanto, um tribunal anulou a proibição, com a alegação de que é inconstitucional, segundo o juiz. A liberdade de reunião pública, bem como a de manifestação, é um direito garantido na Suécia.

O mesmo argumento foi usado pela polícia para autorizar um contraprotesto no qual seriam queimadas uma Bíblia e uma Torá – o livro sagrado dos judeus. Uma porta-voz da corporação explicou que a permissão não foi uma resposta a um pedido de autorização para queimar publicamente os livros, mas sim que a polícia havia aprovado um encontro no qual uma "opinião" seria expressa, e que isso era uma "importante distinção".

A polícia também aprovou recentemente a manifestação de um iraquiano que fugiu para a Suécia - o mesmo que realizou o novo ato nesta segunda-feira. Na época, o homem havia anunciado que pretendia queimar o Alcorão em Estocolmo. No entanto, a corporação enfatizou novamente que emitiria uma permissão para uma reunião pública, não para o conteúdo da reunião. Mas, na verdade, após outras ações anteriores do iraquiano, a polícia abriu um processo contra ele por "incitação contra um grupo étnico" porque o protesto ocorreu próximo a uma mesquita.

A Organização das Nações Unidas (ONU) tem condenado a queima do Alcorão na Suécia, alertando que há um "aumento alarmante em atos públicos e premeditados de ódio religioso". Mas, no mesmo comunicado, o comissário de direitos humanos da ONU, Volker Türk, advertiu que a limitação da liberdade de expressão "deve, como princípio fundamental, permanecer uma exceção".

Uma mulher está seminua e com os braços abertos sobre o altar da Catedral de Colônia. Na barriga dela está escrito GOD.
Em 2013, uma ativista seminua subiu no altar da Catedral de Colônia, na Alemanha, durante a missa de NatalFoto: Elke Lehrenkrauss/dpa/picture alliance

Seminua na Catedral de Colônia

Na Alemanha, a liberdade de expressão também está consagrada na Constituição. O artigo 5 afirma que todos têm o direito de "expressar e divulgar livremente suas opiniões por meio da fala, da escrita e de imagens". Mas há limites.

A Alemanha é um dos poucos países europeus que protege as comunidades religiosas com o chamado parágrafo da blasfêmia. Qualquer pessoa que publicamente "injuriar a religião ou a ideologia de terceiros de forma a causar uma perturbação da paz pública" pode ser condenada a até três anos de prisão. Isso, porém, não tem a intenção de criminalizar o deboche a deuses em geral, mas sim apenas insultos que prejudiquem a paz pública.

A Seção 166 do Código Penal Alemão é muito raramente invocada. Em 2006, um homem de 61 anos teve uma sentença de prisão suspensa depois de distribuir rolos de papel higiênico com a palavra "Alcorão" impressa neles.

Em 2013, uma ativista foi multada por pintar seu torso nu com as palavras "Eu sou Deus" e pular no altar da Catedral de Colônia durante a missa de Natal. Ela foi processada apenas por perturbar a prática da religião e não foi condenada por blasfêmia.

Insultar profetas geralmente não é um caso para os tribunais, e a blasfêmia só está sujeita a punição legal na Alemanha se tiver consequências graves.

Sátira francesa em revista

Em 2015, dois terroristas invadiram a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo, em Paris, e mataram 12 pessoas. Antes disso, o semanário havia publicado caricaturas do Profeta Maomé, o que provocou raiva e indignação entre os muçulmanos em todo o mundo.

Alguns dias após o ataque, o então primeiro-ministro da França, Manuel Valls, compareceu à Assembleia Nacional e declarou que a blasfêmia nunca faria parte da lei francesa.

O presidente francês, Emmanuel Macron, também defendeu o "direito à blasfêmia" em seu país. Isso significa que, na França, a liberdade de expressão inclui a permissão de escrever ou dizer o que muitos consideram blasfêmia.

A blasfêmia, por sinal, não é considerada uma ofensa desde 1881 na França, que tem aplicado uma estrita separação entre a Igreja e o Estado há quase 120 anos. Historicamente, esse secularismo foi uma tentativa de restringir a influência da Igreja no país. E esse conceito ainda goza de grande prestígio entre a população francesa.

Um homem segura uma edição da revista Charlie Hebdo em uma banca de revistas.
Em janeiro de 2015, sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo foi invadida por dois homens, que mataram 12 pessoasFoto: picture-alliance/dpa/P. Seeger

Cartazes de Maomé na Dinamarca

"O que é permitido fazer com a sátira?" Essa foi a pergunta que os dinamarqueses se viram obrigados a fazer em 2005, quando uma série de charges sobre o islamismo, publicada pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, provocou protestos no mundo árabe, alguns deles violentos. O caso levou a discussões sobre liberdade artística e liberdade de expressão também em outros países.

Na época, o primeiro-ministro dinamarquês se distanciou da publicação das charges, mas também fez menção aos direitos de liberdade de imprensa e de expressão, ambos considerados muito importantes pelos dinamarqueses.

Até 2017, a Dinamarca ainda tinha uma lei contra a blasfêmia. Assim como na Alemanha, porém, as autoridades dinamarquesas entraram com poucos processos em casos desse tipo. Entre eles estão dois produtores de rádio acusados de transmitir uma música que zombava do cristianismo na década de 1970.

Em 2014, a artista dinamarquesa-iraniana Firoozeh Bazrafkan foi acusada de exibir os restos triturados de um Alcorão, que ela intitulou "Blasfêmia". Na época, ela comentou: "quero continuar a lembrar às pessoas que não há problema em discordar".

Em ambos os casos, os réus foram absolvidos e, em 2017, a lei contra a blasfêmia foi revogada.

Pedidos de revogação

A Polônia é considerada um país muito católico, no qual a Igreja ainda tem muita influência na vida pública. Como em outros países, a Constituição polonesa também garante a liberdade de expressão, mas, nos últimos anos, artistas foram repetidamente acusados de blasfêmia.

Em 2019, houve um alvoroço por causa de uma imagem da Virgem Maria com uma auréola pintada com as cores do movimento LGBTQIA+. Em todo o país, foram registradas queixas criminais no Ministério Público contra as três jovens que circularam a imagem.

Elas foram acusadas de "ofender sentimentos religiosos" ao apresentarem a santa com as cores do arco-íris, uma ofensa criminal na Polônia punível com até dois anos de prisão. As três mulheres foram absolvidas. O tribunal decidiu que, embora a ação tenha sido "provocativa", elas não tinham a intenção de ofender.

Embora alguns países como a Polônia e a Alemanha ainda tenham parágrafos sobre blasfêmia em seus códigos penais, muitos países europeus já os aboliram. Entre eles está a Irlanda, onde a revogação ocorreu em 2018. Noruega e Holanda, juntamente com a Suécia, também removeram recentemente parágrafos semelhantes de seus códigos.

A questão tem sido frequentemente debatida na Alemanha, com parte da população pedindo que o principal parágrafo seja revogado, em prol da liberdade de expressão.