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Berlim, a capital da solidão

13 de janeiro de 2020

Isolamento social afeta um em cada dez alemães. Em Berlim, onde a situação é particularmente preocupante, oposição quer criar posto no governo para desenvolver políticas públicas direcionadas à solidão e seus impactos.

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Rua de Berlim
Berlim tem a maior quantidade de solteiros na AlemanhaFoto: picture-alliance/dpa/J. Kalaene

Volta e meia surge na imprensa alemã alguma notícia sobre casos de pessoas, na maioria das vezes idosas, encontradas mortas em seus lares. A morte geralmente ocorreu há tempos, e ninguém sentiu falta ou notou o sumiço do indivíduo. A descoberta costuma ocorrer por acaso, quando vizinhos sentem algum cheiro estranho no prédio.

Certa vez passei por uma situação semelhante, mas bem menos dramática. Ao chegar em casa, senti um cheiro estranho vindo do canal de ventilação do aquecedor no banheiro. De início, achei que pudesse ser algum vazamento de gás. Corri para abrir a janela e chamar um técnico para solucionar o problema.

Gripado e com o olfato claramente debilitado, o técnico não conseguiu perceber o odor anormal e, como também não identificou nenhum vazamento, fez a seguinte pergunta: "Os moradores do apartamento debaixo são idosos?" Com uma reposta afirmativa, acrescentou: "Já vi essa história antes. É melhor chamar os bombeiros."

De imediato, veio a negação, mas também fazia uns dois dias que um pacote se encontrava na porta dos vizinhos, o que indicava que o casal não tinha saído de casa desde então. Antes de chamar os bombeiros, resolvi verificar. Toquei a campainha, mas ninguém atendeu. Do lado de fora, era possível ver que havia movimentação no apartamento, com luzes acendendo e apagando. No dia seguinte, após um sinal de alarme ter disparado dentro da casa dos idosos, resolvi conversar com outros vizinhos.

Em grupo, fomos novamente tocar a campainha, depois de muitas tentativas, uma senhorinha de cabelos brancos, simpática, meio surda, que poderia ser a minha avó, abriu a porta. Logo em seguida, uma névoa e um cheiro de queimado emanaram do apartamento. Confusa, dizia que estava tudo bem e repetia que estava se arrumando para ir a um café e que o marido não conseguia desligar o alarme.

Descobrimos que ela queria limpar o fogão com jornal, o qual acabou esquecendo dentro do forno, que foi ligado e transformou o monte de papel em carvão. Por um milagre, uma tragédia não ocorreu. Ela nos contou também que estava sem comer e com sede. Fizemos um chá e levamos algumas frutas. Seu marido, que tinha problemas de saúde, estava deitado, aparentemente alheio a toda a situação.

Ligamos para um número de emergência que havia ao lado do telefone, descobrimos que há dias o casal não recebia a visita dos cuidadores – que passavam para verificar se haviam tomado remédios, se alimentado, para tirar o lixo –, pois o filho médico deles se recusava a pagar pelo serviço. Entramos em contato então com o tal filho, que não foi nada simpático e ficou irritado com a interferência da vizinhança em problemas privados.

No dia seguinte, passei para ver como eles estavam, e, para minha surpresa, o filho abriu a porta. Disse que os pais estavam bem, que não precisavam de nada e praticamente me mandou embora para nunca mais voltar. No fim da história, tudo acabou bem.

Casos como este e dos cadáveres solitários encontrados em apartamentos mostram a dimensão da solidão na Alemanha. Um estudo do governo alemão indicou que um em cada dez habitantes do país na faixa etária entre 40 e 89 anos se sente sozinho, e 7,9% estão socialmente isolados, ou seja, não têm contato com outras pessoas. Essa taxa salta para 14,7% entre os que têm entre 85 e 89 anos.

Berlim foi recentemente denominada a "capital da solidão". Na metrópole de cerca de 3,7 milhões de habitantes, pouco mais da metade de todos os domicílios é composta por apenas uma pessoa. Dados recentes mostram que houve um aumento de 36,3% nesse cenário desde 1991. Uma pesquisa confirmou ainda o título de Berlim como capital dos solteiros, com 36% da população entre 18 e 65 anos não casada –  o maior índice da Alemanha.

Especialistas apontam que a solidão não traz só sofrimento psicológico, mas uma série de riscos para a saúde, podendo causar depressão, demência, doenças cardiovasculares e mortalidade prematura.

Diante desse problema, um deputado estadual da oposição passou a defender a nomeação de um responsável para lidar com a solidão. A função do encarregado seria analisar a dimensão real dessa realidade na cidade e desenvolver políticas para enfrentar esse problema social, seguindo o modelo do Ministério da Solidão, criado no Reino Unido em 2018, numa iniciativa inédita no mundo.

Até agora, o posto de encarregado da solidão ainda é apenas uma proposta, descartada pelo atual governo local. Existem, porém, iniciativas, como uma central telefônica que atende solitários que desejam conversar com alguém, ou seja, que tentam trazer um pouco mais de contato social para os que sofrem com essa triste realidade da vida moderna.

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Clarissa Neher é jornalista da DW Brasil e mora desde 2008 na capital alemã. Na coluna Checkpoint Berlim, escreve sobre a cidade que já não é mais tão pobre, mas continua sexy. Siga-a no Twitter @clarissaneher