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Berlim lembra apresentação do "Réquiem" de Verdi em campo de concentração

Sarah Judith Hofmann (mas)7 de março de 2014

Em 1944, 150 prisioneiros do campo de Theresienstadt cantaram a "Missa de Réquiem" do compositor italiano. Com a presença de um dos sobreviventes, concerto em Berlim relembra o gesto de desafio aos nazistas.

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Foto: Josef Rabara

Alto, ombros largos e um enorme sorriso, Raphael Krasa é desses que todos desejariam como irmão, desses que sempre ganhavam as partidas de futebol quando adolescente.

"Achava que era invencível porque meus pais sobreviveram ao Holocausto. Se eles sobreviveram a isso, eu pensava que também poderia sobreviver a qualquer coisa", comenta.

Os pais responderam a todas as perguntas que ele e o irmão Dani tinham sobre o Holocausto. "Mas esse não era bem o assunto durante o jantar."

Até que, um dia, o telefone tocou. Do outro lado da linha estava o regente americano Murry Sidlin. Ele havia lido num livro que, em 1944, no campo de concentração nazista de Theresienstadt, a Missa de Réquiem de Giuseppe Verdi havia sido apresentada sob a batuta do maestro tcheco Raphael Schächter.

Sidlin não podia acreditar que a difícil peça de Verdi havia sido cantada em latim, sem partituras, por pessoas desnutridas e desesperadas. Ele queria ouvir essa história impossível de quem estivera lá.

Depois de muito procurar, conseguiu o número de telefone de Edgar Krasa. O americano queria saber o que o nome Raphael Schächter significava para ele. "Dei o nome do meu filho em homenagem a ele", respondeu Edgar.

Sidlin havia encontrado o que procurava, e, aos 30 anos de idade, Raphael Krasa ficou sabendo o que o seu nome significava para os pais.

Theresienstadt, o "gueto modelo"

Esse telefonema ocorreu há quase dez anos. Nesta terça-feira (04/03), Raphael, Dani e os pais Hana e Edgar Krasa foram ao Museu Judaico de Berlim para falar sobre o Réquiem de Verdi. A obra, sob o título de Defiant Requiem(literalmente: Missa para os Mortos Desafiadora), foi apresentada na capital alemã, sob regência de Sidlin.

Edgar Krasa Familie Familienporträt
Raphael, Hana, Edgar e Dani Krasa em BerlimFoto: Uwe Steinert, Berlin

Depois de apresentações em Budapeste, Praga, Israel e nos Estados Unidos, o Defiant Requiem era executado pela primeira vez na Alemanha. Além do atores Iris Berben e Ullrich Matthes e do Coro Jovem de Berlim, Dani e Raphael Krasa também estavam no palco. Foi um concerto em memória à apresentação no campo de concentração, há 70 anos, e uma homenagem a Raphael Schächter.

"Ele era um homem muito cordial", relembra Edgar Krasa. "Mas, quando chegava para ensaiar, virava um tirano." Krasa sorri. Aos 93 anos, a memória dele continua em pleno funcionamento.

Em Berlim, ele fala sua língua materna, o alemão, que, depois de décadas em Israel e nos Estados Unidos, ele pouco pratica. De vez em quando usa palavras do inglês. Em 1941, foi deportado para Theresienstadt, um "gueto modelo" não longe de Praga. Com o campo, os nazistas queriam mostrar ao mundo, de uma forma pérfida, que os judeus viviam bem nessa cidade criada só para eles.

Verdi como ato de resistência

Theresienstadt era formalmente um gueto de "autogestão" judaica, sob o comando do chamado conselho de anciões. Os detentos tinham que assumir responsabilidade pela organização de seu alojamento, alimentação e assistência médica.

Konzert-Drama Defiant Requiem Rafael Schächter
Raphael Schächter: música como ato de resistênciaFoto: Courtesy of the Schächter Family

Na verdade, era a SS que decidia sobre a vida cotidiana dos detentos, assombrados pela fome, pela morte e pelo medo constante de deportação para Auschwitz.

Muitos cientistas e artistas famosos foram levados para Theresienstadt. Um deles foi o maestro Raphael Schächter. Edgar Krasa e ele dormiam no mesmo alojamento. "Ele cantava canções folclóricas tchecas conosco. Isso nos dava coragem", relembra.

Schächter não queria que a apresentação do Réquiem fosse uma missa para os judeus mortos, mas uma chance de os prisioneiros dirigirem uma ameaça aos nazistas: a de que eles não conseguiriam fugir da justiça.

As palavras do hino litúrgico medieval, musicadas por Verdi, foram interpretadas como um ato de resistência: Dia da ira, aquele dia / Que dissolverá o mundo em cinzas […] / Quando o juiz se sentar para julgar / O que está oculto aparecerá / Nada ficará impune.

"Naquele momento nos sentimos livres"

Os ensaios aconteceram nos alojamentos, com os homens e as mulheres separados. "Não tenho ideia de como Schächter conseguiu entrar no alojamento das mulheres. Eu mesmo tentei várias vezes, mas não consegui", diz Krasa e ri, matreiro.

Assim como os seus companheiros, ele teve que decorar os textos. Somente Schächter tinha uma partitura da Réquiem, o papel para duplicação era escasso, e os ensaios, muito perigosos. Por propaganda boca a boca os prisioneiros do gueto ficaram sabendo das primeiras apresentações, entre eles Hana, que ainda não conhecia seu marido.

"Não foi fácil conseguir ingresso para uma das apresentações", relembra, "até que um conhecido finalmente conseguiu. Sentávamos no chão do alojamento. As poucas cadeiras eram reservadas aos mais velhos."

Edgar Krasa
Retrato do jovem Edgar Krasa, desenhado por Leo Haas em Theresienstadt, 1943Foto: USHMM, courtesy of Edgar and Hana Krasa

O coro era composto por 150 cantores, que ocupavam o palco ao lado de quatro solistas e um pianista. "Não havia orquestra, só um piano, mas era como se ouvíssemos uma. Naquele momento, sentíamo-nos livres. Assistir àquele concerto nos deu muita força", lembra Hana. "Cantávamos contra a falta de esperança", completa Edgar Krasa.

Schächter e seu coro se apresentaram 16 vezes em Theresienstadt. Na última, diante daqueles a quem as palavras ameaçadoras de Verdi foram dirigidas.

Em 23 de junho de 1944, os nazistas mostraram seu "gueto modelo" para membros da Cruz Vermelha. O ponto alto da programação foi um concerto com a Missa de Réquiem. "Ninguém aplaudiu", conta Krasa, "nem os alemães nem a Cruz Vermelha". Eles entenderam a mensagem.

Em 16 de outubro de 1944, a SS enviou o regente e seu coro para Auschwitz. Quase todos foram assassinados logo após a chegada ao campo de concentração, ou morreram no caminho, nas chamadas "marchas da morte".

Não se sabe exatamente como e quando Raphael Schächter foi morto. A música salvou a vida de Edgar e de Hana Krasa. Nas apresentações em Berlim, dois filhos e um neto seus fizeram parte do coro. Cantando, eles mantêm acesa a memória da Réquiem em Theresienstadt para as futuras gerações.