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Bibliothek: Sobre a tradução entre o português e o alemão

Ricardo Domeneck
30 de maio de 2017

Há uma dificuldade extra na hora de traduzir entre as duas línguas: em alemão, várias palavras extremamente simples foram manchadas pela ideologia nazista. E escritores e tradutores têm que circundar isso.

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Symbolbild Dativ statt Genitiv
Foto: picture-alliance/ZB

O trabalho de tradução entre o português e o alemão com certeza tem todos as dificuldades comuns entre duas línguas de raízes tão diferentes. É quase impensável imaginar que as duas são ambas línguas da mesma grande família. A lista das línguas indoeuropeias mais faladas traz o espanhol, o inglês, o híndi e o urdu, o português, o bengali, o russo e o punjabi, com mais de cem milhões de falantes, seguidas de perto pelo alemão, o francês e o persa. Pensar que todas estas línguas têm uma mesma matriz causa vertigem. Nossa conversa, porém, é sobre estas duas primas distantes, o português e o alemão.

Algumas são questões que atazanam os escritores das duas línguas, como as diferenças entre a língua falada e a língua escrita. Mesmo que muito menor do que o Brasil, só na Alemanha há diferenças regionais gigantescas, sem sequer contar as variações austríacas e o alemão suíço, que em minha opinião deveria er considerado outra língua. Um vendedor de quiosque em uma cidade pequena de Brandemburgo e o de uma cidade pequena da Bavária teriam dificuldades em compreender um ao outro se falarem os dialetos da sua região. Em minhas visitas com um namorado à Suábia, eu me sentia completamente perdido quando ele conversava com a família em suábio. E há cerca de 800.000 falantes de suábio na Alemanha. Não entendo nenhum deles.  As diferenças entre a fala do berlinense e a fala do muniquense causam tanta dificuldade a quem está aprendendo o alemão quanto, eu imagino, as diferenças entre o recifense e o paulistano causariam a um alemão aprendendo português. Um tradutor precisa estar atento a tudo isso. Nossas sintaxes tão diferentes. Até o uso distinto da vírgula me confunde às vezes.

Mas há uma dificuldade extra, esta específica ao alemão. Vou mencioná-la com um exemplo. Há poucos dias, eu conversava com Oliver Precht, o tradutor alemão de Oswald de Andrade, Eduardo Viveiros de Castro e Hilda Hilst. Tentávamos encontrar o equivalente alemão para uma palavra extremamente simples do português: "terra”. Mas "terra” naquela maneira que a usamos quando dizemos "nossa terra”, ou "nessa terra”. Em alemão, se você traduz por "Erde”, entende-se ou o planeta ou "terra” no sentido orgânico mesmo, de solo, de terra, a coisa marrom. A coisa. Se se usa "Land”, a palavra assume uma compreensão diferente da forma quase emocional e privada que tem "terra”, pois "Land” implica Estado-nação, "Land” é o país. Não é o mesmo que a "terra” de alguém, com sua terra natal, que pode ser um cantinho de um país sem qualquer representação política. Quando pensamos na palavra "Boden”, por exemplo, surgiu a dificuldade: em alemão, várias palavras extremamente simples foram manchadas pela ideologia nazista.

Os escritores e tradutores alemães têm que circundar esta dificuldade constantemente. Palavras que, nas línguas originais como o português, não têm esta implicação ideológica, são quase proibidas em alemão se não se quer invocar o contexto política do Terceiro Reich. O texto em questão, por exemplo, falava de antepassados, algo que tem um determinado contexto em um país com passado colonial e de forte imigração como o Brasil. No entanto, em alemão a raiz da palavra para antepassados, "Ahnen”, traz o contexto de palavras como Ahnennachweise (a árvore genealógica para provar ascendência ariana) ou Ahnenpass (passaporte de ascendência) e assim por diante. A própria preocupação com ascendência e ancestralidade é algo suspeito na Alemanha de hoje. Mesmo uma palavra como "Blut” (sangue), se usada de forma inconsequente, pode trazer à mente o slogan nazista de Blut und Boden (sangue e solo).

Alguns escritores viriam a trabalhar justamente com isso, como o romaniscta W. G. Sebald ou o poeta Max Czollek. É claro que o português, a língua de crimes coloniais, também tem suas dificuldades, suas implicações, suas manchas históricas. Mas a situação é particularmente complicada, pois a memória dos terrores ainda é recente.

Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.