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Brasil supera marca de 200 mil mortes por covid-19

7 de janeiro de 2021

Atrás do mundo na vacinação, cometendo os mesmos erros sistematicamente e com um governo que há muito abandonou qualquer iniciativa de frear a doença, país supera até mesmo projeções mais pessimistas do início da crise.

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Túmulos em cemitério no Rio
Hospitais superlotados, UTIs em colpaso. País revive cenas do início da pandemiaFoto: picture-alliance/AP Photo/S. Izquierdo

Pouco menos de dez meses depois de registrar oficialmente sua primeira morte por covid-19, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (07/01) a marca de 200 mil óbitos pela doença. Foram mais 1.524 mortes registradas nas últimas 24 horas, elevando o total para 200.498, segundo dados do Ministério da Saúde. No mesmo dia, o país ainda se aproximou da marca de 8 milhões de casos, com o registro de 87.843 novas infecções, um novo recorde diário.

No entanto, especialistas alertam que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação. O ex-ministro da Saúde Nelson Teich, por exemplo, estimou em 25 de dezembro, considerando a subnotificação, que o país já havia alcançado a marca de 230 mil mortes.

Na ocasião, Teich afirmou que a atual pandemia é a pior que o Brasil já viveu, mais grave até que a gripe espanhola de 1918-1920, que matou 35 mil brasileiros à época, numa população de pouco mais de 30,6 milhões. Seguindo o ritmo atual de contágio, o país deve passar em poucas semanas a proporção de mortes causada pela gripe espanhola.

A primeira morte oficial associada à covid-19 ocorreu em São Paulo em 12 de março. Envolveu uma mulher de 57 anos. Desde então, é como se praticamente toda a população de Angra dos Reis (RJ) tivesse desaparecido. O número superou até a previsão mais pessimista do Ministério da Saúde realizada em abril, quando a pasta ainda era comandada por Luiz Henrique Mandetta, que projetava entre 80 mil e 180 mil mortos durante a pandemia. 

Após uma estabilização e até uma redução no número de mortes entre outubro e novembro, o ritmo voltou a se acelerar em dezembro, com o país voltando a observar registros superiores a mil mortes em 24 horas. Na mesma época, o país registrou um novo recorde diário de novos casos, passando a marca de 70 mil em um único dia – cifra que foi superada nesta quinta-feira. O número de casos totais mais que dobrou desde o ínicio de agosto.

Apenas um país acumula mais mortes do que o Brasil: os Estados Unidos, que já registaram mais de 360 mil óbitos. No entanto, ao contrário dos EUA, o Brasil permanece atrás na principal iniciativa para pôr um fim à pandemia: a vacinação. Enquanto mais de 40 nações já iniciaram esforços para imunizar suas populações, o Brasil ainda segue com um plano vago de imunização, ficando atrás até mesmo de outros países latino-americanos.

Além dos problemas de planejamento, o próprio presidente Jair Bolsonaro tem alimentado paranoia sobre os imunizantes, num sinal desanimador de que uma das maiores tragédias sanitárias da história do país ainda não tem um fim à vista. Nos últimos dias, o Brasil vem passando por uma espécie de déjà vu dos piores momentos da pandemia em 2020, como nova superlotação de hospitais em Manaus e contratação de leitos emergenciais na rede privada em São Paulo e Rio de Janeiro.

E as próximas semanas não indicam um arrefecimento no avanço da doença, como o registrado à época em que o país registrou 100 mil mortes. Uma nova variante do vírus mais infecciosa identificada no Reino Unido já foi detectada no país. E desde o final do primeiro semestre de 2020 são comuns cenas nas grandes cidades brasileiras que mostram estabelecimentos lotados, com pessoas ignorando regras de distanciamento. Cenas que se repetiram com força país afora no fim do ano. 

Há muito governos e prefeituras sucumbiram à pressão para não impor novas medidas impopulares de distanciamento, num sinal de que o presidente venceu a disputa travada com autoridades municipais e estaduais para manter o comércio aberto, como se o país não estivesse enfrentando uma pandemia. Um comportamento que vai na contramão de países europeus, que têm apostado em lockdowns e reforço de medidas para frear a doença.

O exemplo de Bolsonaro

Marcas trágicas como a registrada nesta quinta-feira sequer são destacadas pelo governo de Jair Bolsonaro. Em maio, o Ministério da Saúde deixou de publicar nas redes sociais os boletins diários. O último foi publicado um dia antes de o país superar pela primeira vez a marca de mil mortes em 24 horas. As coletivas da pasta se tornaram uma raridade.

O que restou de uma posição oficial do governo sobre o avanço da pandemia ocorre em falas do presidente. Praticamente todas têm o objetivo de minimizar a doença e incentivar a população a seguir normalmente com a vida. Na última terça-feira (05/01), por exemplo, dois dias antes da marca de 200 mil mortos ter sido cruzada, Bolsonaro afirmou que "o vírus é potencializado pela mídia sem caráter que nós temos".

O comportamento seguiu a mesma linha adotada pelo presidente desde o início da pandemia. Nos dez meses posteriores à primeira morte por covid-19 no Brasil, Bolsonaro alternou minimização do perigo, negação, indiferença, zombaria, desprezo, sabotagem das medidas de isolamento social, transferência de responsabilidade e disseminação de notícias falsas. Na reta final do ano, passou também a alimentar paranoia sobre vacinas.

No início de março, quando o país acumulava oficialmente 210 casos de covid-19 e uma morte, ele chamou a doença de "histeria" e anunciou que realizaria uma festa de aniversário. No dia 22 do mesmo mês, ele disse que o número de mortes por coronavírus no Brasil não ultrapassaria os 800 óbitos da gripe H1N1 em 2019, mesmo com a covid-19 já vitimando mais de 600 pessoas por dia na Itália. Na mesma semana, chamou a covid-19 de "gripezinha".

Em agosto, quando o número de mortes se aproximava de 100 mil, disse: "Vamos tocar a vida e se safar desse problema". No mesmo mês, o presidente, que sabotou deliberadamente esforços de distanciamento social, disse que a "eficácia da máscara é quase nenhuma". Na última segunda-feira, o presidente voltou a zombar das recomendações do uso de máscara quando aproveitava suas férias no litoral paulista, onde incentivou aglomerações. "Mergulhei de máscara também, para não pegar covid nos peixinhos", disse.

Essa zombaria e desrespeito às normas de distanciamento social para conter a pandemia se transformou nos últimos meses num comportamento a ser seguido pelos seus apoiadores, como uma marca de distinção. "O Brasil tem que deixar de ser um país de maricas", disse em novembro. "Todos nós vamos morrer um dia", completou. "Tem medo do quê?", já havia dito o presidente no final de julho, quando as mortes passavam de 92 mil.

Seguindo o exemplo de Bolsonaro, deputados alinhados com o presidente passaram a pregar a desobediência ao uso de máscaras e a espalhar mentiras de que os acessórios é que estavam fazendo as pessoas adoecerem.

Em dezembro, quando a doença já mostrava ter voltado com força, foi a vez de o presidente voltar ao estágio da negação, afirmando que o país vivia um "finalzinho de pandemia".

Um ministério sem rumo

Mas a visão do presidente sobre a pandemia não se refletiu apenas no exemplo pessoal. Foi transformada em política pública. Na prática, Bolsonaro é o ministro da Saúde desde maio, após a saída de Nelson Teich. Tanto Teich quanto seu antecessor, Mandetta, saíram ou foram forçados a sair pelo presidente por não concordarem com a sabotagem das medidas de distanciamento ou com a promoção das "curas" duvidosas de Bolsonaro, como a hidroxicloroquina.

Para tocar o dia a dia da pasta, Bolsonaro colocou um general sem nenhuma experiência na área, Eduardo Pazuello. O militar disse que, antes de assumir o cargo, "nem sabia o que era o SUS". Na gestão Pazuello-Bolsonaro o ministério abandonou qualquer esforço de coordenação com os estados, deixou de lado a política de distanciamento, expandiu o uso da droga favorita de Bolsonaro e não fez esforços para aumentar a testagem. A doença seguiu um curso natural no país, sem obstáculos.

Com Pazuello no comando, as mortes explodiram no país. Eram 14.817 quando o general assumiu. Mas a pasta demonstrou ao longo dessa gestão que suas prioridades eram outras. Em junho, o ministério tentou esconder os números da pandemia, mas foi forçado a voltar atrás por ordem do Supremo. Entre agosto e setembro, quando mortes passavam de 100 mil, a pasta direcionou esforços para tentar dificultar o aborto legal no Brasil.

Eduardo Pazuello e Jair Bolsonaro
Pazuello e Bolsonaro. General sem experiência em saúde pública assumiu ministério após antecessores discordarem do presidenteFoto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

E conforme os casos continuaram a se acumular, o governo federal passou a estimular a boataria sobre números inflados. Também adotou uma postura "otimista" sobre a crise, preferindo propagandear um "número de curados" da doença, minimizando a contagem de mortos e não procurando saber se os que se livraram da doença não ficaram com sequelas. "O Brasil tem o maior número de curados", alardeou um "Painel da Vida" do governo na primeira vez em que o país registrou mais de mil mortos num dia.

O desleixo do Ministério da Saúde sob Pazuello se reflete até mesmo em seu site. Em janeiro, a página ainda exibia informações desatualizadas sobre a natureza do vírus, afirmando que sua transmissão não ocorre pelo ar, mas especialmente por contato direto como "aperto de mãos". Só que desde julho a Organização Mundial da Saúde reconhece a propagação do coronavírus pelo ar. Já um aplicativo da pasta informa que "pessoas saudáveis" não precisam usar máscara em praticamente todas as situações do cotidiano.

A insistência na hidroxicloroquina

Mesmo com alguns países já iniciando a vacinação, o governo federal anunciou em dezembro um plano para gastar até R$ 250 milhões numa espécie de "kit covid", com hidroxicloroquina e azitromicina. Tudo na esfera do programa Farmácia Popular. O plano foi anunciado mesmo  com mais de 2,5 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina encalhados nos estoques. Há meses cientistas apontam que essas drogas não têm eficácia comprovada contra o coronavírus, mas o governo Bolsonaro ainda segue insistindo no tratamento, inicialmente promovido em círculos radicais de direita na internet e pelo presidente dos EUA, Donald Trump.

A falta de comprovação científica continua a não inibir Bolsonaro. Desde o início, a entrada em cena do remédio permitiu que os apoiadores e o círculo radical do presidente rotulassem os críticos da estratégia do governo – ou da falta de estratégia – como "torcedores do vírus" e desviassem o foco, como se o avanço das mortes fosse culpa dos céticos da cloroquina.

Em um livro sobre sua experiência no Ministério da Saúde, Mandetta apontou que Bolsonaro sabia da ineficácia do medicamento, mas que também o abraçou como parte de uma estratégia para que os brasileiros voltassem a trabalhar. No dia 29 de março, Bolsonaro afirmou que a droga seria uma "cura". "Deus é brasileiro, a cura tá aí", disse. "Está dando certo em tudo que é lugar." Meses depois, ele ergueria uma caixinha do remédio como se fosse uma hóstia para um grupo de apoiadores.

Ainda sem vacinação à vista em todo o país

O Brasil não está apenas atrás de dezenas de países em relação ao início da vacinação, é também a única nação do mundo em que o presidente vem agindo ativamente para sabotar esforços de imunização. A guerra de Bolsonaro contra as vacinas eclodiu no segundo semestre de 2020, quando avançou a iniciativa paralela do governo de São Paulo para garantir doses diante da inação da administração federal.

A vacina promovida por um desafeto político provocou a fúria de Bolsonaro. A partir de agosto, o presidente passou a sistematicamente minar a confiança na vacina Coronavac do governo paulista, produzida em parceria com a empresa chinesa Sinovac. Em novembro, Bolsonaro chegou a celebrar a morte de um voluntário brasileiro da Coronavac – num caso sem relação com o estudo – e a suspensão temporária dos testes.

Atrás do governo paulista, a administração federal apostou num acordo com a empresa anglo-sueca AstraZeneca para a produção de vacinas, em parceria com a Fiocruz. Na contramão de quase todos os países do mundo, o Ministério da Saúde se comprometeu inicialmente com apenas uma vacina, e não com um leque diversificado como ocorreu, por exemplo, na União Europeia. Contatos com a americana Pfizer no segundo semestre inicialmente não despertaram o interesse do governo.

Bolsonaro também chegou a desautorizar Pazuello quando o ministro mostrou interesse em adquirir a vacina paulista. O lançamento da vacina da AstraZeneca acabou sofrendo atrasos após problemas na análise de dados sobre a eficácia, colocando inicialmente o precário plano de imunização federal em dúvida.

Em dezembro, diante do progresso na elaboração do plano de imunização paulista, o governo finalmente resolveu se apressar. Manifestou interesse pela vacina da Pfizer, mas esbarrou na alta demanda mundial. A Pfizer ainda reclamou dos entraves impostos pelo governo para a aprovação da vacina. A resposta de Bolsonaro foi desdenhar da empresa. "Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente?"

Diante do avanço da imunização em outros países, Pazuello começou a fazer anúncios contraditórios e promessas que logo eram desmentidas. Chegou a afirmar que a vacinação poderia começar em dezembro com doses da Pfizer, mesmo depois de a empresa dizer que não poderia fornecer nenhuma dose naquele mês. Em um espaço de dias, ele ainda lançou datas como janeiro, fevereiro ou março para o início da vacinação. Em dezembro, o governo finalmente apresentou um vago plano de imunização, sem datas e com informações incompletas sobre protocolos de segurança. Cientistas que foram citados como colaboradores reclamaram que nunca tinha visto o documento.

Tardiamente, o governo lançou em dezembro uma licitação para comprar mais de 330 milhões de seringas. O setor que produz o material reclamou que já vinha alertando o governo desde julho para apressar a comprar do material. A licitação foi um fracasso. Só 7,9 milhões foram garantidas. Bolsonaro acabou suspendendo a compra e culpou os fabricantes por supostamente elevarem os preços. No entanto, ele não havia feito objecões em 2020 ao adquirir doses de hidroxicloroquina por três vezes o valor de mercado. E quando o fracasso da licitação foi revelado pela imprensa, o Ministério da Saúde usou suas redes para publicar um falso desmentido. No entanto, o próprio governo usou o fracasso como justificativa para barrar a exportação de seringas em documento enviado à Secretaria de Comércio Exterior.

Bolsonaro com uma embalagem de hidroxicloroquina
Bolsonaro com uma embalagem de hidroxicloroquina. Presidente continua a promover medicamento enquanto sabota esforço de vacinaçãoFoto: Carolina Antunes/PR

Ainda sem um cronograma, Pazuello tem apostado em falas tranquilizadoras sobre supostos estoques de vacinas. Em dezembro, disse que o Brasil teria 15 milhões de doses do imunizante da AstraZeneca, mas a Fiocruz, responsável por produzir a vacina, disse que só seria capaz de entregar 1 milhão de doses a partir da segunda semana de fevereiro. Para ter algo à mão em janeiro, o governo apelou para a importação de 2 milhões de doses prontas produzidas na Índia. Com essa carga, Pazuello espera começar a vacinar em 23 de janeiro – dois dias antes do prazo apontado pelo governo paulista, num sinal que a súbita pressa tem motivos políticos. Em contraste, o governo paulista diz que seu estoque de vacinas já chega a 10,8 milhões de doses.

Na quarta-feira, Pazuello fez um pronunciamento em rede nacional para propagandear os esforços da sua pasta, mas não mencionou quantas pessoas o governo pretende vacinar nos próximos meses. Mesmo sem ainda nenhuma vacina efetivamente em estoque, Pazuello disse que o Brasil será um "exportador" de doses. Ele afirmou que estados e munícipios têm no momento estoques suficientes de seringas para começar a vacinação, mas não abordou como pretende contornar o fracasso da licitação quando a campanha se expandir.

Paranoia antivacina alimentada por Bolsonaro

Em seu anúncio televisivo, Pazuello fez questão de destacar que a "vacina não será obrigatória". Uma declaração bem ao gosto do seu chefe.

Nos últimos meses, Bolsonaro tem insistido nessa tecla, mas também sabotado esforços para que as vacinas sejam aceitas pela população. Sua primeira ofensiva foi contra a Coronavac. Em outubro, o presidente disse que o povo não seria "cobaia da vacina chinesa de João Doria". Em dezembro, reclamou das condições impostas pela Pfizer para a compra de vacinas alimentando temores sobre efeitos colaterais. "Se você virar um jacaré, é problema seu", disse.

No Natal, afirmou: "A eficácia daquela vacina em São Paulo parece que está lá embaixo, né?", em referência às dúvidas iniciais sobre a eficácia da Coronavac – que o governo paulista afirma agora ser de 78%. Na mesma semana, ele já havia dito que a "melhor vacina é o vírus".

Enquanto líderes de outros países estão entre os primeiros a tomar a vacina para incentivar suas populações, Bolsonaro também vem repetindo que não vai se vacinar, como se isso fosse um problema exclusivamente seu. Em todo o mundo, ele é o único chefe de estado ou governo que vem alimentando esse tipo de paranoia, em contraste até mesmo com figuras próximas ideologicamente, como o americano Donald Trump, que direcionou recursos robustos para vacinas, e o israelense Benjamin Netanyahu, que vem se gabando de ter comandado uma campanha que já imunizou 10% das sua população.

Paralelamente, redes ligadas ao bolsonarismo tem despejado na internet todo o tipo de informação paranoica sobre vacinas, com fantasias delirantes sobre imunizantes com chips para controle de mente.

A atitude vem gerando consequências. O percentual de brasileiros que não pretendem se vacinar saltou de 9% para 22% entre agosto e dezembro.