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'You've come a long way, babe'

15 de março de 2010

Cresci na era da desesperança e o Brasil parecia um gigante adormecido que não despertaria. A gente parecia que nunca ia dar certo. Mas ele acordou, perdeu o medo de se olhar no espelho e a vergonha de ser brasileiro.

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Foto: Karim Ainouz

Não me lembro exatamente quando, mas me lembro da época. Eu devia ter uns 15 ou 16 anos. Os militares já haviam saído do poder. Era um período de transição entre a ditadura e uma possível democracia. 1982, 1983.

Eu me lembro claramente de ir ao supermercado com minha avó, ajudá-la nas compras do mês. Minha mãe era separada do meu pai, trabalhava, era arrimo de família; e era a minha avó quem tomava conta da casa.

A gente fazia as compras logo depois que minha mãe recebia seu salário mensal. No supermercado, havia sempre uns funcionários que empunhavam uma maquinazinha que eles utilizavam pra remarcar os preços. Pois sim, os preços mudavam a cada dia, subiam a cada dia. A inflação era algo difícil de imaginar. Os preços dos produtos mudavam literalmente de um dia para outro, ou de uma semana para outra. Lembro claramente do barulho da engenhoca de remarcar preços: tchac, tchac, tchac.

Aí entendi porque tínhamos que comprar os mantimentos do mês logo no dia em que saía o salário - se esperássemos muito, o mesmo dinheiro daria pra comprar só a metade, quem sabe até menos.

Tenho que confessar que, me lembrando daquela época, nunca imaginei que as coisas iriam melhorar. Era impossível imaginar que um país que tinha uma dívida externa impagável fosse em tão pouco tempo capaz de estar na situação atual: de devedores passamos a credores.

O clima geral era de pessimismo, de que nunca iríamos ser capazes de sair de um certo buraco onde havíamos caído. Inspirado na letra do Hino Nacional, que dizia que éramos um “gigante pela própria natureza...”, a brincadeira era de que o Brasil era um gigante adormecido, que nunca, ou tão cedo, iria despertar. Em suma, fui criado na era da desesperança. A gente, e a América Latina como um todo, parecia que nunca ia dar certo.

Hoje não precisamos mais fazer as compras do mês no dia em que sai o salário. Não precisamos sequer fazer as compras do mês, podemos fazer as compras da semana. A inflação foi domada, e junto com isso, parece que o gigante acordou, ou pelo menos está dando sinais bem claros de que está despertando.

Acho que o país começou a perder o medo de se olhar no espelho. Acho que o Brasil começou a deixar de ter vergonha de ser brasileiro. Sinto que a desesperança foi aos poucos se transformando em esperança. A miséria ainda existe, mas aos poucos ela vai deixando de ser tão endêmica, tão cruel. A sensação de que a gente vai poder chegar lá fica cada vez mais forte.

Lembro-me claramente das imagens da posse do Lula, em 1º de janeiro de 2003. Lembro da Esplanada dos Ministérios cheia de gente, gente como a gente, celebrando qual um carnaval.

Independentemente do que admiro ou critico no seu governo, acho que o fato de um nordestino criado no Sul, imigrante dentro do seu próprio país, filho de mãe separada (que nem eu) e sem educação formal, ter chegado ao poder tem um valor simbólico inestimável. Antes mesmo de o Obama dizer “Yes, we can”, nós brasileiros o fizemos. Ora, todos nós pensamos: se o Lula pode, eu também posso. Não precisamos ser bem-nascidos, ricos, brancos e eruditos para chegarmos lá, para sonharmos.

Minha avó completou 105 anos. Ela, muito mais do que eu, viu o Brasil passar por tão distintos momentos. Afinal de contas, é mais que um século. Ela ainda conversa, anda, vive uma vida quase normal. Mas sua memória já começa a falhar um pouco. Ela não vai mais ao supermercado. Mas, com certeza, ficaria muito feliz em saber que os preços não serão diferentes na semana seguinte.

Trinta anos depois. Estamos em 2010. Sem querer ser taxado de otimista patológico, acho que as mudanças foram muitas, e para melhor. Comparando com a idade da minha avó, trinta anos é muito pouco tempo, quase nada. Então, eu arrisco terminar recitando a letra de uma música gringa: Brasil, “you’ve come a long way, babe”.

Karim Aïnouz, cineasta brasileiro, vive atualmente em Berlim.