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Cadernos autobiográficos reavivam debate sobre Heidegger e o nazismo

Christina Ruta (av)16 de março de 2014

Lançamento gradual de escritos inéditos de 1930 a 1970 – os "Cadernos negros" – lança luz sobre papel do antissemitismo no pensamento do filósofo. Publicação de correspondência privada anuncia novo round no debate.

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Foto: picture-alliance/akg

Martin Heidegger (1889-1976) é considerado um dos mais influentes filósofos alemães do século 20. Mas ele também foi membro do NSDAP, o partido de Adolf Hitler, no período de 1933 a 1945 – portanto entre o início do regime nazista na Alemanha e o fim da Segunda Guerra Mundial.

Em seu discurso de posse como reitor da Universidade de Freiburg, em 1933, Heidegger conclamou a uma renovação da instituição desde a base, com o nazismo como força determinante e conectada à Volksgemeinschaft, a comunidade do povo alemão.

No entanto, permanece em debate até que ponto o estudioso realmente endossava a ideologia nazista: ela está intrinsecamente ligada à sua filosofia, ou ele tentou apenas aproveitar a boa oportunidade para realizar suas próprias ideias?

Martin Heidegger Appel der deutschen Wissenschaft Leipzig
Evento nazista em 1933: Heidegger no palcoFoto: picture-alliance / akg-images

Cadernos negros inéditos

Ao publicar os assim chamados Schwarze Hefte (Cadernos negros), o filósofo alemão Peter Trawny reaqueceu a discussão sobre o engajamento político de Martin Heidegger. Trata-se de 34 cadernos de capa preta, em que ele anotou seus pensamentos de 1931 até o início da década de 70.

Os cadernos "não foram publicados anteriormente, eram mais ou menos desconhecidos, quase ninguém os leu. O próprio Heidegger cuidou para que ninguém os visse, além da família", relata Trawny. Os escritos estão sendo lançados na Alemanha em oito volumes, do fim de fevereiro até meados de março. Para os pesquisadores, é uma promessa de novos insights no universo mental do filósofo, inclusive em suas reflexões sobre o nazismo.

O volume que sai em 15 de março contém também um caderno sobre os anos 1945 e 1946. Até seu recente aparecimento, acreditava-se que não mais existisse: ele estava em poder do pesquisador de literatura clássica Silvio Vietta. Heidegger era amigo da família Vietta, e chegou a ter um relacionamento amoroso com a mãe de Silvio, a quem presenteou o caderno em questão.

"Esse caderno trata das tentativas de Heidegger de se autoestabilizar, nessa época difícil e crítica." Passagens antissemíticas não há, assegura o literato berlinense Vietta, docente da Universidade de Hildesheim.

Medo do "judaísmo mundial"

Na qualidade de editor, Trawny leu todos os 34 cadernos, e aponta passagens claramente problemáticas. "Pela primeira vez, é preciso dizer que Heidegger não só se engajou pelo nacional-socialismo, o levou muito a sério e durante um certo período o acompanhou com simpatia – para depois criticá-lo severamente; além disso, vemos agora que ele também abriu seu pensamento filosófico ao antissemitismo."

Assim, Heidegger fala do "não pertencimento ao mundo" do judaísmo (Weltlosigkeit des Judentums) e de como a disposição ao cálculo matemático é própria dos judeus. Com isso, o pensador alemão não só se servia de preconceitos antissemitas, como também os relacionava à sua própria filosofia, em que criticava duramente a era da primazia da técnica.

"Desse modo, o cálculo, por exemplo, é colocado numa relação especial com a técnica, e súbito o 'judaísmo mundial' se transforma num representante especial da técnica universal", analisa Trawny. Além disso, Heidegger se apoia no Protocolo dos Sábios de Sion (panfleto do início do século 20 baseado em documentos forjados sobre uma suposta conspiração judaica) ao afirmar que o "judaísmo mundial" lutava anonimamente contra os nazistas.

"É um estereótipo antissemita dessa época achar que existia um poder anônimo, de ação internacional, denominado 'judaísmo global' e que tenta exterminar os alemães, por exemplo", aponta Trawny.

Muitos amigos judeus

Vietta, por sua vez, tacha de absurda a acusação de antissemitismo. "Acho que Trawny canaliza a coisa numa direção errada: ela não tem nada a ver com antissemitismo. Prova em contrário seria o fato de Heidegger ter estudado com um judeu, Edmund Husserl."

Hannah Arendt und Martin Heidegger
Hannah Arendt e Heidegger:discípula e amanteFoto: picture-alliance/dpa

Além disso, ele teve numerosos alunos e amigos judeus; com a filósofa Hannah Arendt chegou a manter um caso amoroso, argumenta o professor de literatura. "Ele realmente criticou os judeus devido ao pensamento calculista. No entanto – e aqui eu criticaria Heidegger – ele não atentou suficientemente para o fato de os judeus terem sido forçados a adotar esse papel no decorrer de sua história."

"Eles eram realmente a elite financeira, também no velho Império Alemão, até serem expulsos dessas posições." Apesar de tudo, a crítica do filósofo se dirige ao pensamento calculista, não tendo nada a ver com racismo, arremata Vietta.

O que presumivelmente aproximou Heidegger do nazismo foi seu anseio por uma revolução, por renovar o espírito alemão. "Ele possivelmente acreditava, de modo um tanto ingênuo, ao assumir o reitorado em 1933, que uma reforma da universidade também poderia implicar uma renovação espiritual da Alemanha."

Novas revelações em correspondência privada

"Então, a partir de 1934-35, ele reconheceu que o Terceiro Reich era exatamente o contrário do que queria: era uma máquina bélica, era pensamento técnico", descreve Vietta. Assim, em 1934 Heidegger renunciou ao cargo de reitor em Freiburg. "Certa vez ele me disse: 'Sabe, em 1933 as coisas ainda não estavam assim tão claras.'"

Trawny avalia os registros com maior rigor. Sobretudo o volume contendo as anotações de 1931 a 1934, durante o reitorado, mostram quão radical era o envolvimento de Heidegger. E os trechos interpretáveis como antissemíticos se apresentam no fim da década de 30.

Prof. Trawny Philosophisches Seminar Martin-Heidegger-Institut
TrawnyFoto: Peter Trawny

"Em minha opinião, são trechos que tentam difundir em sua filosofia um tipo específico de antissemitismo. E esse é o verdadeiro problema: não temos um filósofo que guarda um ressentimento ou preconceitos contra os judeus na vida privada, mas que procura definir e analisar filosoficamente um conceito como 'judaísmo mundial', por exemplo."

O debate sobre as relações entre Heidegger e o nazismo prossegue, e o próximo round já está anunciado: Vietta pretende publicar a correspondência entre seu pai e o controverso filósofo.