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Checkpoint Berlim: A pedra sagrada dos pemóns

24 de abril de 2017

Tiergarten abriga a pedra Kueka, reivindicada pelos indígenas venezuelanos, que argumentam que ela foi retirada de um parque nacional sem autorização da comunidade.

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Pedra Kueka está exposta no Tiergarten
Kueka é rabiscada por visitantes do parque no centro da capital alemãFoto: DW/C.Neher

Foi num encontro com lideranças locais, em Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana que faz fronteira com o Brasil, que ouvi pela primeira vez a história da Kueka. Eu estava com colegas alemães participando de uma excursão da faculdade. A representante de um conselho da comunidade cobrava vividamente de nós a repatriação da pedra sagrada.

Nós, atônitos, ouvíamos calados a história e tentávamos entender o conflito que estava sendo relatado e a própria situação em que nos encontrávamos. "Depois que a Kueka foi levada diversos desastres naturais aconteceram na região", destacava energicamente a representante. Durante o discurso fomos percebendo o quão delicado e presente era o episódio naquela região longe de tudo, mas ligada à Berlim, a cidade onde morávamos.

A pedra sagrada, que estava no Parque Nacional Canaima, localizado na fronteira do país com o Brasil e a Guiana, era um importante elemento cultural da comunidade indígena pemón. Diz a lenda que dois jovens indígenas de comunidades diferentes, apaixonados, fugiram para se casar, desrespeitando as regras estabelecidas pelo deus máximo. O desafio irritou profundamente o deus, que, como punição, transformou o casal em pedra para passarem a eternidade lado a lado. Para os pemóns, as pedras sagradas seriam os avós da comunidade.

Clarissa Neher vive em Berlim desde 2008
Clarissa Neher vive em Berlim desde 2008Foto: DW/G. Fischer

Mais precisamente: a Kueka era a avó. A remoção da pedra foi uma violência contra os pemóns, afirmava a representante venezuelana. Enquanto ela contava a história, os presentes, um pouco envergonhados de estarem ouvindo pela primeira vez a história de um conflito que envolvia a sua cidade, indagavam onde em Berlim estaria a tal pedra sagrada e como a Kueka, de 35 toneladas, teria ido parar na capital alemã.

No fim do encontro, alguém disse achar que a Kueka era parte de uma exposição permanente com pedras do mundo no Tiergarten. Lembrei-me da tal exposição, mas eu nunca tinha reparado atentamente naquelas pedras expostas em círculo num gramado no meio do parque que começa atrás do Portão de Brandemburgo.

O projeto Global Stones, criado por um artista alemão, deveria promover a paz mundial. Cada pedra representa um continente e um sentimento. Trazida para Berlim em 1998, a Kueka simbolizaria a América e o amor.

Segundo o criador do projeto, o próprio governo venezuelano da época teria o presenteado com a pedra. Ele alega que não sabia do valor dela para a comunidade indígena e até mesmo contesta essa importância, argumentando que governo e ativistas criaram, anos depois, o mito da Kueka para manipular os pemóns. Como prova, o artista apresentou um parecer de um especialista em cultura pemón.

Por outro lado, os pemóns afirmam que jamais foram consultados sobre a remoção da pedra e que chegaram, em vão, a tentar impedir o transporte da Kueka. Além disso, a pedra estava dentro de um parque que foi tombado pela Unesco como patrimônio da humanidade, o que de qualquer maneira proibiria a sua remoção.

Em 2012, o conflito atingiu o auge e ganhou os jornais. Vários protestos foram realizados em frente à embaixada da Alemanha em Caracas para exigir a devolução da Kueka. O artista se mostrou disposto a devolver a rocha, mas, em troca, exigia uma nova pedra para a exposição. Outro empecilho: quem iria pagar pelo transporte das pedras. Nem Venezuela nem Alemanha e nem o autor do projeto estavam dispostos a assumir os custos.

Hoje, quase 20 anos depois de sua remoção do parque venezuelano, a Kueka continua separada do seu amado, e isso apesar da punição dos céus que os uniu para a eternidade. Em Berlim, a avó é admirada por turistas – mas nem tanto quanto o conjunto de pedras que simbolizam o perdão –, serve de banheiro para cachorros que brincam no gramado e também para rituais de passagem no solstício de verão, além de ter se tornado um espaço de expressão para aqueles que, como os cães, têm a necessidade de marcar território com sua assinatura por onde passam.

Clarissa Neher é jornalista freelancer na DW Brasil e mora desde 2008 na capital alemã. Na coluna Checkpoint Berlim, publicada às segundas-feiras, escreve sobre a cidade que já não é mais tão pobre, mas continua sexy.