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Cientistas pedem revisão do acordo Mercosul-UE

9 de setembro de 2020

Em artigo, 22 pesquisadores de instituições europeias e americanas apontam incompatibilidade entre o pacto comercial, ainda não ratificado, e os princípios ambientais europeus.

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"Não há planeta B": protesto em Berlim pressiona por políticas verdes mais ambiciosas
"Não há planeta B": protesto em Berlim pressiona por políticas verdes mais ambiciosasFoto: Reuters/M. Tantussi

Um estudo realizado por um grupo multidisciplinar de 22 cientistas de diversas instituições europeias e americanas, divulgado nesta quarta-feira (09/09), aponta que o acordo de livre-comércio com o Mercosul é incompatível com as diretrizes ambientais da União Europeia (UE).

Segundo os pesquisadores, os problemas centrais são que o acordo, que ainda precisa do aval de todos os países-membros da UE, não prevê sanções em caso de descumprimento de metas ambientais, não exige transparência, não traz mecanismos de rastreabilidade dos produtos e não é inclusivo – ou seja, ouviu apenas os participantes da cadeia produtiva exportadora, mas não os povos que serão diretamente impactados por ela.

"Da forma como está, o tratado é inviável. Um novo acordo precisa ser feito, a partir de um grupo multissetorial, incluindo os povos indígenas tradicionais, as populações locais e sendo prevista a criação de um mecanismo de apelação e queixa", diz à DW Brasil um dos autores do artigo, o pesquisador Tiago Reis, que estuda ações de combate ao desmatamento na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

O artigo destaca, sobretudo, que há incompatibilidades entre o tratado de livre-comércio e o Acordo Verde Europeu, divulgado pela presidência da Comissão Europeia em 11 de dezembro do ano passado.

O Acordo Verde prevê investimentos de 100 bilhões de euros e um desenvolvimento sustentável da União Europeia. Isso também inclui o comércio: só deverão ser firmados tratados com nações que também perseguem as metas do Acordo do Clima de Paris – do qual Jair Bolsonaro ameaçou se retirar.

"O plano europeu objetiva preservar a biodiversidade, o meio ambiente, ser socialmente justo e inclusivo. Assim, as cadeias produtivas de alimento que abastecem a Europa precisam atender a esses critérios", comenta Reis. "Mas o acordo comercial pretende aumentar importações [por parte da Europa] de commodities que trazem riscos de desmatamento e de violações de direitos humanos, sem observar esses critérios de sustentabilidade, como participação [dos povos locais], consulta e inclusividade, transparência, rastreabilidade.”

Ele lembra ainda a falta da determinação, no acordo, de mecanismos de sanção em caso de descumprimento de metas ambientais, como o Acordo de Paris, assinado em 2015. "O texto deveria mencionar claramente que em caso de descumprimento [de tratados assim] a União Europeia poderá bloquear o comércio", defende ele.

"O comércio internacional é a espinha dorsal da economia mundial. Mas em vez de ser maligno, precisa ser alavancado para alcançar sustentabilidade", comenta o geógrafo Simon Bager, também pesquisador da Universidade de Louvain. "Por isso, nosso artigo aponta os princípios centrais para acordos comerciais sustentáveis e tenta convencer a União Europeia a aplicá-los."

O acordo com a UEfoi celebrado como uma vitória da política internacional do governo Jair Bolsonaro no ano passado. Mas a parceria entre Mercosul e União Europeia, depois de 20 anos de negociações entre os blocos, está longe de chegar a um desfecho favorável. O termo foi firmado em 28 de junho de 2019 mas, para entrar em vigor, depende da ratificação de todos os países envolvidos. 

A resistência é grande, principalmente devido aos problemas ambientais que fazem com que muitos produtos agropecuários produzidos na América do Sul cheguem à Europa com a pecha de "desmatamento importado" – ou seja, por terem sido cultivados de maneira não sustentável, a culpa ambiental também é vista como dos compradores. A chanceler federal alemã, Angela Merkel, por exemplo, já demonstrou "sérias dúvidas" sobre a viabilidade do acordo.

Histórico

Quando foi firmado, no ano passado, o tratado entre os dois blocos foi celebrado como um feito histórico. A soma dos mercados representa 25% da economia do planeta – e afeta diretamente 780 milhões de pessoas. Na época, o governo brasileiro divulgou uma estimativa de que o acordo, uma vez em vigor, traria um aumento de R$ 336 bilhões em 15 anos ao PIB do Brasil.

No mês seguinte, entretanto, sobretudo pela repercussão internacional das queimadas recordes na região amazônica – foram 30.901 focos somente em agosto de 2019 –, líderes europeus passaram a utilizar a questão ambiental para, publicamente, externarem animosidades frente à ratificação do tratado.

Para o jurista Chris O'Connell, da Universidade da Cidade de Dublin, artigos acadêmicos como o produzido por eles servem para fornecer aos "Estados, organizações e cidadãos os meios para olhar para o que realmente está em jogo". Ele destacou pontos como a emergência climática, "os incêndios galopantes na Amazônia" e as taxas crescentes de desmatamento no Brasil como alertas que precisam ser observados pelo resto do globo.

Os autores do artigo – grupo do qual fazem parte biólogos, geógrafos, ecólogos, juristas e economistas, entre outros – endereçam as questões aos políticos europeus.

"Esperamos que eles acolham nossa análise com sensibilidade, entendendo a urgência e a gravidade do momento. Que compreendam que estão prestes a ratificar um acordo comercial que não tem os mecanismos necessários e suficientes para garantir que as políticas públicas europeias de crescimento verde sejam atendidas", argumenta Reis.

Pesquisadora das universidades de Oxford e de Lancaster, a bióloga e ecóloga Erika Berenguer preocupa-se com os efeitos que o tratado, da maneira como está redigido, pode trazer para a Amazônia.

Segundo ela, a expansão agropecuária na região "não foi boa para ninguém", e a prova está no fato de ser um lugar com baixo índice de desenvolvimento humano "e maior taxa anual de perda de floresta". Ela acredita que o momento é de buscar por alternativas que tragam "novas formas de desenvolvimento para a região, que não venham atreladas ao desmatamento".