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MúsicaBrasil

Blecaute: o "general da banda" que assumiu apelido racista

21 de novembro de 2023

Um dos maiores sambistas da história da música brasileira começou a vida como engraxate e se destacou artisticamente após ser revelado em show de calouros.

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O sambista Blecaute em 1973
"Blecaute não recebeu merecido reconhecimento por sua obra em vida"Foto: Arquivo Nacional

Era completamente outro aquele Brasil da primeira metade do século 20. No afã de uma pretensa democracia racial, que nunca existiu de fato, mas cujo discurso era vigente, não parecia haver nada de errado em atribuir feito apelido um insulto racista.

Também não parecia esquisito assumir a ofensa e transformá-la em orgulhoso nome artístico. O noticiário trazia frequentes relatos de blecautes na Europa, intencionalmente realizados nas grandes cidades para dificultar bombardeios aéreos durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, o compositor, cantor e radialista Ariovaldo Pires (1907-1979), mais conhecido como Capitão Furtado, sugeriu o apelido para Otávio Henrique de Oliveira (1919-1983).

Ele parece ter gostado da brincadeira. Em 1941, estreou a alcunha Blecaute em uma das suas já então costumeiras apresentações na rádio Difusora, emissora AM que operava em São Paulo. Era uma carreira ascendente e, logo, ele se tornaria um dos maiores intérpretes de marchinhas carnavalescas do Brasil.

Problematizar o apelido — e sua aceitação pelo artista — com o olhar de hoje pode ser visto como anacronismo. "Algumas atitudes do Blecaute mostram que ele tinha consciência sobre racismo e negritude", analisa o cineasta Rogério de Moura, criador da página Negros Geniais, no Facebook. "Acontece que vivemos outros tempos, influenciados por uma militância negra que prefere o discurso direto, não havendo margem para quem prefira combater o racismo com sutileza."

Moura ressalta, entretanto, que é "claro que ele sofria racismo". "Qualquer negro que se torna notório sofre o racismo. Acho que até o Pelé passou por isso, mas apagaram isso da história dele para destacar a identidade de democracia racial do Brasil", comenta.

"O racismo de ontem e de hoje são os mesmos. Bem como a maneira como os negros combatem. A diferença é que, antigamente, a própria projeção do artista servia para ele como instrumento de combate. Hoje em dia o artista precisa ser militante. Houve uma politização mais intensa da questão", acrescenta.

Revelação do rádio

Nascido na cidade do Espírito Santo do Pinhal, ele se mudou ainda criança para a capital paulista, já órfão de pai e mãe. Teve uma infância pobre e precisou trocar a escola pelas ruas, onde trabalhou como engraxate, jornaleiro, aprendiz de mecânico e frentista.

Ele ainda não havia completado 14 anos quando participou de um programa de calouros chamado Peneira de Ouro, da rádio Tupi. Foi sua revelação e, a partir de então, ele se tornaria figurinha fácil nas apresentações radiofônicas da época. Sua voz, com timbre privilegiado, havia conquistado público cativo.

Aos 22 anos, logo após ter assumido o nome artístico Blecaute, mudou-se para o Rio, contratado pela rádio Tamoio. Passou também a colaborar assiduamente com outras emissoras, como a rádio Mauá e a rádio Nacional.

Dois anos mais tarde, em 1944, atuou como cantor no filme Tristezas Não Pagam Dívidas, chanchada brasileira de Ruy Costa e José Carlos Burle. No elenco, havia nomes grandes da cena cinematográfica nacional, como Grande Otelo e Oscarito. No mesmo ano, gravou seu primeiro disco, chamado Eu Agora Sou Casado.

Mas a consagração popular ainda levaria mais tempo. Em 1949 ele gravou seu grande sucesso: General da Banda, composta por Satyro de Melo, Tancredo da Silva Pinto e José Alcides, tornou-se o maior hit do carnaval de 1950 e marcaria uma recorrente caracterização de Blecaute, fardado de forma caricata e bem-humorada, feito ele o próprio general. Conforme escreveu o jornal Folha de S. Paulo no obituário de Blecaute, "General da Banda é sem dúvida, uma das melhores músicas do carnaval de todos os tempos".

Ele assumiu o personagem e, a partir de então encarnou o papel do oficial responsável pela animação do carnaval carioca, todos os anos — sempre com novas marchinhas de sucesso, evidentemente, e um indefectível sorriso que, nas palavras do apresentador César de Alencar, exibia "150 dentes". Segundo a Folha, Blecaute era um "folião empolgado e malicioso" e integrou o primeiro time dentre os intérpretes carnavalescos daquela época.

Principalmente nos anos 1950, sua participação também passou a ser recorrentes nos filmes brasileiros.

Compositor bissexto, o maior sucesso de sua lavra é a valsa Natal das Crianças, uma canção de fim de ano que foi gravada pela primeira vez em 1955 e até hoje segue presente, na voz de diversos outros cantores, principalmente em festas escolares e eventos do tipo.

Farra no velório

Esquecido e no ostracismo, o fim do cantor é lamentado em texto publicado pelo Instituto Memória Musical Brasileira. "Apesar de sua incontestável importância para a música brasileira, Blecaute não recebeu merecido reconhecimento por sua obra em vida, nem por parte da indústria fonográfica, e nem pela crítica musical", diz o verbete. "Pobre e quase sem poder fazer shows por causa de seus problemas de saúde, morreu em 9 de fevereiro de 1983, pouco antes do carnaval daquele ano. Não conseguiu realizar seu último grande sonho: gravar um LP relembrando seus maiores sucessos."

E a fanfarronice que lhe foi peculiar em vida também acabou guardando um episódio para a hora da morte. "Quem me contou foi um repórter que cobriu o velório do Blecaute", diz o historiador Luiz Antônio Simas.

No seu livro Coisas Nossas, ele narra a confusão — que era apenas para ser uma homenagem. Durante o seu velório, no cemitério São João Batista, no Rio, seus amigos fizeram praticamente um baile, entoando sucessos da carreira do Blecaute. Teve General da Banda, Maria Candelária e Maria Escandalosa, entre outros.

Mas três de seus amigos, já embriagados, erraram de cemitério e foram parar no do Caju. Lá ocorria o velório de um capitão do exército, segundo o relato de Simas. Sabendo do combinado, eles chegaram já cantando General da Banda, para o horror da viúva — a certa animação chegou a contagiar outros presentes.

O historiador comenta que essa cantoria para defunto errado foi "uma tremenda homenagem" à memória do sambista. Que, acabou tendo um velório duplo, já que foi postumamente relembrado em dois lugares ao mesmo tempo.

De acordo com informações do Museu Brasileiro de Rádio e Televisão, Blecaute gravou mais de 70 músicas.

No dia 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra em todo o Brasil. Data é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro. A DW publica, até o dia 24 de novembro, uma série de perfis de personagens que deixaram marcas na história brasileira e que são pouco lembrados ou conhecidos.