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"Economias da América do Sul vivem maldição da volatilidade"

5 de dezembro de 2019

Altamente dependentes da exportação de commodities, países da região assolados por crises políticas vivem fim de ciclo de bonança econômica, que abala a popularidade de quem está no poder, afirma pesquisadora.

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Manifestante em Santiago, capital do Chile, em 12 de novembro de 2019
Manifestantes em Santiago, capital do Chile, em 12 de novembroFoto: picture-alliance/AP/F. Esteban

O continente sul-americano viu em 2019 convulsões políticas e protestos de rua eclodirem em diversos países. O Chile discute elaborar uma nova Constituição, o presidente da Bolívia renunciou e se exilou no México, o governo do Equador se transferiu temporariamente para uma nova cidade para evitar manifestações, e a Colômbia viveu nesta semana sua terceira greve geral em um mês.

Há algo em comum entre tais processos? Segundo pesquisa realizada por dois cientistas políticos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), sim. A economia de todos esses países sul-americanos tem alta dependência da exportação de commodities, cujos preços flutuam de forma mais abrupta do que produtos industrializados ou serviços. A queda dos preços das commodities a partir de 2011 reduziu a entrada de recursos e piorou a condição de vida da população, que agora pressiona por mudanças de governo.

Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores Daniela Campello e Cesar Zucco elaboraram o que chamam de Índice de Bons Tempos Econômicos, que mede a variação do preço das commodities no mercado internacional e da taxa de juros nos Estados Unidos.

Desde a década de 1960, sempre que houve queda consistente no índice, e o continente enfrentou atribulações políticas três vezes: na primeira, eclodiram os golpes militares; na segunda, a redemocratização dos países; e a terceira se desenrola agora.

"É o que chamamos de maldição da volatilidade. As receitas fiscais variam brutalmente, e há falta de continuidade de políticas", diz Campello em entrevista à DW Brasil. O trabalho será publicado em livro pela Cambridge University Press em 2020.

Ela considera que economias tão dependentes do cenário internacional trazem prejuízos à democracia. "Os presidentes que calham de estar no governo num período de bonança, independentemente de agenda política ou nível de corrupção, têm apoio popular, e os presidentes em período de crise têm baixa popularidade […] O eleitor não consegue comparar a competência dos governos", afirma.

Para superar a volatilidade e seus efeitos políticos, ela recomenda que os países adotem políticas econômicas anticíclicas, para economizar durante os bons momentos e gastar mais nos períodos de crise, e diversifiquem a cesta de produtos de exportação.

Campello  interpreta a queda brusca da popularidade de Dilma Rousseff após os protestos de junho de 2013 e seu impeachment em 2016 como um sinal antecipado do que viria a se espalhar depois pelo continente.

DW Brasil: O que as recentes crises políticas em países da América do Sul têm em comum?

Daniela Campello: Esses países estão atravessando um processo econômico parecido, o fim de um ciclo de bonança, com consequências políticas. Em comum, eles têm inserção internacional como exportadores de commodities e importadores de capital privado externo. Por isso, as economias são muito sensíveis aos preços das commodities e às taxas de juro internacionais, que determinam o quanto o capital vai ou não para países emergentes.

Nós criamos o que chamamos de Índice de Bons Tempos Econômicos, que resume as flutuações desses dois fatores. O preço das commodities flutua muito mais que o de produtos industrializados, e ficamos reféns desses ciclos. O último período de bonança começou em 2003, quando houve a entrada da China no mercado internacional e o preço das commodities subiu, e acabou por volta de 2011. Nessa fase, você vê todos os presidentes da região, da esquerda do [Hugo] Chávez à direita do [Álvaro] Uribe, bem-sucedidos, com as pessoas satisfeitas, redução de pobreza e os ricos não perdendo.

Esse ciclo se inverteu quando a China começou a desacelerar. O preço das commodities caiu, e o crescimento e o investimento diminuíram. Se antes estava todo mundo ganhando, passa a ser alguns ganham e outros perdem, há mais conflito distributivo. A pobreza e a desigualdade aumentam.

Por que depender da exportação de commodities é um problema?

A gente fica muito exposto, é o que chamamos de maldição da volatilidade. As receitas fiscais variam brutalmente, e há falta de continuidade de políticas. E existe pouco incentivo para o governo não gastar no período de boom, então quando quando chega a crise ninguém economizou. Os períodos de bonança geram expectativas altas que se frustram no período de crise.

O Chile tem um esquema fiscal anticíclico em que eles forçam o governo a economizar na bonança para gastar na crise. Mesmo assim, o país sofreu o resultado de uma redução à metade do crescimento econômico nos últimos anos, pois é uma economia muito dependente do cobre. Falta de diversificação não é bom.

Como isso se reflete na política?

O eleitor tende a votar baseado no seu bem-estar. Os presidentes que calham de estar no governo num período de bonança, independentemente de agenda política ou nível de corrupção, têm apoio popular, e os presidentes em período de crise têm baixa popularidade, independentemente de serem bons ou ruins. O eleitor não consegue comparar a competência dos governos.

A gente teve três ciclos fortes na América do Sul no pós-guerra. Nos anos 1960, a reversão foi justificativa para alguns golpes militares, e nos anos 1980 contribuiu para uma virada para a democracia. Estamos agora na terceira reversão de uma bonança.

Como sua pesquisa interpreta o caso brasileiro?

O Brasil não é dos países mais dependentes de exportação de commodities da região, [o valor das exportações de commodities sobre o total de exportações] está na faixa de 55%. É um valor alto, mas não é dos mais altos. Porém é um país muito dependente de capital externo.

No começo dos anos 1990, houve melhora do cenário internacional, com queda nos juros americanos. Adotamos a âncora cambial, que só seria possível num processo de grande entrada de dólares, o que beneficiou a estabilização econômica e o fim da inflação. O começo do primeiro governo Fernando Henrique [Cardoso] foi beneficiado por esse cenário externo. Já no seu segundo governo, houve alta dos juros americanos, as crises russa e asiática e o fim da âncora cambial, e houve frustração no país.

No período Lula [Luiz Inácio Lula da Silva] houve uma bonança fantástica. A popularidade que ele ainda tem está ligada ao bem-estar que aconteceu durante seu governo, e parte à sua autoridade pessoal e capacidade política dele. Mas a sorte do Lula e o azar da Dilma [Rousseff] são uma realidade indiscutível. Para os apoiadores do PT, a leitura é que o Lula foi competente e a Dilma teve azar, e para os economistas ortodoxos o Lula foi sortudo e a Dilma é incompetente. Para nós, a verdade está no meio do caminho.

O colapso do governo Dilma é associado a uma reversão desse ciclo internacional. Houve uma queda brusca de popularidade e ela perdeu o diálogo, não teve sucesso na retórica de que não havia uma crise. Havia uma crise, e a oposição conseguiu dizer que aquela crise havia sido produzida unicamente no Brasil. Após a eleição, ela fez aquela virada centrista, e o candidato que perdeu [Aécio Neves] não aceitou o resultado e começou o processo de impeachment, um processo político que se utilizou da crise econômica. Aí o Brasil sofreu mais forte do que no resto da região por conta da desestabilização política gerada.

Como o Índice de Bons Tempos Econômicos se relaciona com a popularidade de um presidente?

Temos séries desde o começo dos anos 1980 para todos os países da América do Sul, com exceção do Paraguai. Analisamos a popularidade mensal dos presidentes, e em todos os países a gente vê uma relação positiva entre o Índice de Bons Tempos Econômicos e popularidade. O cenário internacional fica favorável, a vida das pessoas melhora, e as pessoas respondem apoiando mais o governo.

A exceção é o Chile no último período da Michelle Bachelet, quando a política econômica anticíclica virou uma lei. A correlação entre o nosso índice e a popularidade presidencial era positiva no Chile no período inicial. Quando a política anticíclica se torna uma prática, ela deixa de existir, e quando vira lei, a relação se inverte. É uma exceção que confirma a regra, quando a política anticíclica está na lei, o cenário internacional fica favorável, e a popularidade começa a cair, porque o governo está economizando em vez de gastar.

Qual o impacto desses ciclos econômicos no resultado de eleições?

A probabilidade de um presidente ser reeleito ou eleger o seu sucessor em períodos de cenário internacional favorável é quase 50% mais alta do que em desfavorável. Isso é problemático para a democracia, porque no cenário internacional não há nada que um presidente possa fazer para controlar. Os presidentes são julgados por fatores que eles não controlam.

E tem um terceiro aspecto, que são as transições de governo. Codificamos transições desde o final dos anos 1950, e consideramos transição irregular aquela que não acontece segundo as regras ou a data prevista. Num período de reversão, como o que gente está vivendo hoje, tendemos a ter mais transições irregulares, seja na democracia ou da democracia para governos autoritários.

Como superar essa volatilidade e seus efeitos políticos?

É preciso discutir política fiscal anticíclica. Há uma dificuldade dessa agenda com a direita, porque se essa proposta aparecer na mesa hoje vai ter quem diga "estão querendo gastar dinheiro para sair da crise e a gente precisa ter austeridade econômica". Há também uma resistência da esquerda, porque quando se fala em economizar na bonança parece que se está atando a mão dos governos. Nosso teto de gastos foi uma solução simplista, botamos um teto e agora não sobe mais o gasto. Não é essa a ideia.

A outra questão é a diversificação econômica. Existem iniciativas, por exemplo do Banco Mundial e do FMI, para estimular fundos de investimento dos países, que numa primeira etapa funcionem para mitigar esses ciclos internacionais e, numa segunda etapa, para diversificar a economia. Não há nada de muito radical, mas é uma discussão que tem que estar na agenda.

A política anticíclica no Chile não foi suficiente para evitar a atual crise no país.

Há economistas que dizem que sem controle de capital não adianta a política anticíclica, porque os dólares vão entrar e a moeda vai valorizar, o que gera bem estar por si só. Mesmo o FMI, após depois da crise de 2008, começou a se abrir para a possibilidade de controle de capital na entrada. No caso do Chile, mesmo com uma política anticíclica, que mitigou a volatilidade dos ciclos, talvez a dependência tão grande do cobre ainda seja uma questão não resolvida via política fiscal.

Há uma guinada política à direita no continente?

Não leio o que está acontecendo como uma virada à direita, nem o que aconteceu nos anos 2000 como virada à esquerda. Há pouca evidência de que o eleitor latino-americano seja ideológico. Há evidência forte de voto econômico no final dos anos 1990, um cansaço com o modelo e com o crescimento baixo. Houve um voto contra os governos no poder. Da mesma forma, não acho que há uma virada ideológica no Chile contra o governo de direita, mas uma frustração com a perda de poder aquisitivo.

O que se passa em períodos de reversão é que questões latentes nos países emergem. O Chile é um país muito desigual, e existe um desinteresse grande dos jovens pela política. Outras questões latentes são problemas de corrupção, de maus serviços públicos. Num período de bonança, essas questões são mascaradas, mas quando o cenário se reverte, esses problemas voltam para a mesa.

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